“Em defesa da Rotura – para ti”, por Noah Zino

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A serra ardia. As minhas irmãs, com 2 e 4 anos, tinham sido levadas para mais perto do mar, no Funchal, e eu tinha ficado em casa à espera do meu pai. Ele tinha ido acudir um amigo que vivia na serra, e voltaria mais tarde. Em vez disso, recebi um telefonema. “Sabes fazer a pé o caminho até casa dos avós?”

Lembro-me nitidamente da cor do céu, do cheiro que entrava pelas casas, pelos quartos. Lembro-me de sentir a impotência face ao céu, ao telefonema, ou ao futuro das minhas irmãs, caso o fogo descesse a montanha. Lembro-me de não querer aceitar que isso fosse a normalidade.

Alguém nos trouxe até aqui. A ciência queimou décadas a admitir esse facto. Hoje as Nações Unidas admitem um maior: “Precisamos de disrupção para parar a destruição”, porque já queimámos décadas a mais com fé em quem nos trouxe até aqui.

Traçam-nos vidas policiadas, para ser impossível dar uma resposta adequada às crises. Poderosos, “peritos” ou literalmente polícias:

  • Individualizam os problemas (a tua palhinha de plástico ou metal: pessoal, despolitizada, e isolada);
  • Externalizam as soluções (despersonalizando e institucionalizando-as).

O julgamento é o mesmo: não deves falar do que não sabes, e só podes saber de ti.

Cinco décadas de ambientalistas seguiram estas ordens. Insiste-se ainda em restringir a luta climática a petições a quem nos trouxe até aqui, em limpar praias de lixo destinado a lá voltar, ou em tentar, no curso de décadas, arranjar uns ecopontos para o nosso local de trabalho.

Na televisão, dizem que 33 milhões de pessoas no Paquistão viveram a catástrofe em setembro, porque um terço da superfície do país ficou inundada. Guterres diz que estamos numa autoestrada para o inferno. Eu vejo o passeio real, claustrofóbico, que fiz a pé na Madeira com chamas à vista, e as estradas em Pedrógão em que pessoas assaram vivas.

Nada mudou desde Pedrógão Grande. Aliás, as emissões aumentaram, e as petrolíferas fizeram lucros recorde. A pergunta permanece a mesma: qual é a resposta adequada?

Culpar o indivíduo e pôr fé lá fora, nas instituições, esconde a ligação entre o individual e o contexto, rouba-nos o direito de agir.

Rotura começa sempre no meio, na relação entre indivíduo e contexto. Rotura é empoderar o corpo a alterar o seu contexto, através do coletivo.

Rotura é aceitar as implicações de viver num sistema totalizante: não há “fora” do capitalismo – não pode ser reformado ou ignorado (muito menos em crise climática, não há competição possível). Isto obriga-nos a ter estratégias com objetivos concretos para o derrubar. Obriga-nos a ter responsabilidade e coragem por uma enorme capacidade organizativa.

Em 2015, existiam 15 contratos de exploração de gás fóssil em Portugal. Após dezenas de ações do Climáximo, restavam apenas dois em 2019, sobre os quais se organizou uma ação de desobediência civil massiva. As empresas foram embora. Hoje é ilegal explorar gás em Portugal.

Concordar só em teoria com ação coletiva é o oposto de realismo climático. Cada uma de nós chega ao fim deste texto com uma reação emocional. Qual é a resposta adequada a essas emoções?

Se falta azeite em casa, sensibilizas a tua família; se falta limpar o chão, negoceias; se uma fábrica suja um rio, fazes uma petição; e para mudar uma lei laboral, organizas uma manifestação… Mas qual é a resposta adequada quando governos e empresas unanimemente condenam a possibilidade de uma vida digna para todas as pessoas que conheces? Quando – unanimemente – estão dispostos a investir em combustíveis fósseis, em projetos insanos de um aeroporto ou gasoduto? Qual é a resposta adequada quando é preciso mudar tudo na sociedade, da produção à distribuição, da gestão à economia?

Ninguém é ignorante da crise climática, sei por facto que tu não és. “Que futuro?” –  perguntam todas as pessoas com quem alguma vez conversaste sobre a crise climática. Todas carregamos ansiedade, por vezes desespero. A única diferença entre todas essas pessoas é a clareza sobre o mecanismo de mudança da sociedade. 

Talvez hoje revolução seja menos um processo lento e inevitável, e mais o puxar do travão de emergência de uma locomotiva desenfreada, rumo ao abismo.

Mas quem puxa o travão de mão?

Rotura é democracia posta em prática. Rotura é reconhecer que a história não é algo que se conta nos livros, mas algo que nos atrevemos a fazer. É reconhecer que direitos são mais que leis, são o sangue do nosso dinamismo psicológico e social. 

Em suma, pessoas têm direitos ou não? Direito ao sustento, à vida? Pessoas têm o direito de destruir a vida, de matar pessoas em massa? Se não, e vemos os direitos fundamentais violados, qual é a nossa responsabilidade perante isso?

Se existem direitos fundamentais e inalienáveis, e todas as instituições são culpadas ou cúmplices de violência sistemática, da quebra de todos os direitos de milhares de milhões de pessoas, qual é a tua responsabilidade? Qual é o teu plano?

O movimento por justiça climática tem um plano. A campanha Empregos para o Clima tem o conhecimento, o Climáximo tem a experiência, milhares de pessoas têm a vontade. Faltas tu.

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