Aquilo é a Europa

Parte 3: Paolo

[Este episódio foi produzido para ser ouvido e não apenas lido. O que se segue abaixo é a transcrição integral de toda a peça áudio.]

I

Paolo Borromeo:
Um dia encontrei um artigo sobre a oportunidade dos Vistos Gold em Portugal e disse à minha esposa “Isto é perfeito”. Primeiro, começámos a rir-nos, mas eu insistia e ela não percebia porquê.isse-lhe que o meu avô era originalmente português mas viveu em Macau. Isto foi há muito tempo, quando Macau ainda era uma colónia de Portugal. Então disse “isto talvez faça sentido, seria voltar às origens, certo?”.

Paolo Borromeu tem 40 anos. É um tipo simpático, culto, com piada. Não é difícil estar à conversa com ele durante horas. É natural de Manila, a capital das Filipinas, onde vive com a mulher e as duas filhas, e é Presidente e CEO da Ayala Healthcare Holdings, uma empresa privada de saúde.

Há dois anos, em 2017, viu um anúncio sobre os Golden Visa – ou Vistos Gold – e foi assim que tudo começou.

Paolo Borromeo:
E numa das nossas viagens, em meados de 2017, acho que foi em outubro, enviei um email ao David antes de viajar e disse “hey, vou estar por aí, podes explicar-me essa coisa dos Vistos Gold?”. E foi assim que começou.

Inicialmente, escreveu uma mensagem num fórum, à procura de ajuda para entender o que era isto dos Golden Visa. David Poston, que tinha experiência com Vistos Gold e no mercado imobiliário português, respondeu ao pedido e recebeu-o em Lisboa. O negócio ficou feito nesse mesmo outubro. Mais de meio milhão de euros investidos num apartamento perto da Baixa de Lisboa e Paolo estava pronto para iniciar o processo que o levaria a ter autorização de residência no país.

Não foi o único. Dados de março de 2019 mostram que, desde a criação dos Vistos Gold, em 2012, foram já atribuído 7,291. A história de hoje é sobre um deles.

A série “Aquilo é Europa” é uma história sobre a Europa Fortaleza. Seja toda a gente bem-vinda ao Fumaça, eu sou o Ricardo Esteves Ribeiro.

II

Parte 3: Paolo.

Paolo Borromeo conta-me que a principal culpada por investirem em Portugal é a sua mulher. Foi ela que deu o “empurrão” final que precisavam para viajar até Lisboa, em 2017, com vista a procurar um apartamento à venda na cidade.

Paolo tinha já estado no país por volta de 2008, não se lembra ao certo. Na altura, ficou apaixonado pela capital.

Paolo Borromeo:
Eu gostei mesmo de Lisboa quando lá estive. Estava fascinado com tudo. A simplicidade da vida e a beleza do antigo e do novo.

E quando veio pela segunda vez a Portugal, em 2017, o mesmo aconteceu com a sua companheira.

Paolo Borromeo:
Quando voltámos, em 2017, eu e a minha mulher e apaixonámo-nos pelo sítio. Por tudo. Adoro o facto de que é uma cidade onde se pode andar a pé; as pessoas são muitos amigáveis; muito fluentes em inglês; é muito fácil deslocarmo-nos; gostámos de tudo.

A decisão foi rápida. Reuniu-se com David Poston, que lhe explicou o processo e o apresentou a uma firma de advogados que o ajudaria, e foram visitar apartamentos à venda. Escolheram um na Baixa e avançaram.

Ricardo Esteves Ribeiro:
Qual foi a razão para vires para Portugal com o Visto Visa?

Paolo Borromeo:
Ok, a principal razão foi porque tenho dois filhos. Um de 7 e outro de 5 anos. Eu sempre acreditei que era bom criar-lhes opções,  enquanto posso e eu posso pagar. Digo opções, porque mais tarde é mais fácil circular pelo mundo com um passaporte português, comparando com um passaporte filipino e, ao mesmo tempo, Portugal é um sítio muito bonito e, como é que hei-de dizer? Consigo ver-me a viver lá e a fazer coisas lá.

A ideia, diz Paolo, é que, um dia, se tudo correr bem, ele e a sua família possam mudar-se para cá.

Paolo Borromeo:
Vou por as coisas desta maneira, Ricardo: não vejo a minha primeira aquisição como um investimento para mim, como um investimento para fazer dinheiro. Basicamente, comprei aquele apartamento porque é ali que eu vou ficar quando me mudar.

Se a primeira aquisição não era um investimento, a segunda foi. Em fevereiro de 2018, comprou um prédio antigo no Bairro Alto que está agora em obras. A ideia é vendê-lo logo que acabem.

Por esta altura, Paolo tinha já iniciado o seu processo junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Abriu conta no banco e entregou vários documentos: certidão de nascimento, registo criminal limpo, um comprovativo de que o capital usado era seu. Depois, esperou pelo agendamento do SEF.

Ricardo Esteves Ribeiro:
Quanto tempo demorou até o SEF dizer: “Venha até cá, tem uma marcação”?

Paolo Borromeo:
Então… outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho… Oito meses depois.

Como as Filipinas não têm embaixada portuguesa, o processo demorou mais do que o costume. Teve de autenticar os documentos na embaixada portuguesa mais próxima, em Jacarta, na Indonésia, e só depois foi chamado de novo a Portugal para vir fazer testes biométricos (na prática, incluir a sua impressão digital e fotografia na base de dados do país).

Ricardo Esteves Ribeiro:
Então quando é que conseguiste o cartão?

Paolo Borromeo:
O meu cartão? Um segundo, deixa-me ver o email. Eu não tenho ainda o cartão físico, só uma cópia. Tive o meu cartão a 21 de março de 2018.

Ele queria dizer 2019, enganou-se. Basicamente, recebeu a sua autorização de residência em cerca de ano e meio, mesmo com os atrasos na embaixada.

Ricardo Esteves Ribeiro:
Eu estive a falar com alguns imigrantes. Neste caso, não eram investidores mas migrantes económicos que vêm para cá trabalhar. Eles dizem sempre que se há uma palavra que sabem em português é “esperar”. Estão sempre à espera. É esse o tipo de relação que tens com o SEF? Como é que os descreverias?

Paolo Borromeo:
Bem, vamos pôr as coisas desta forma: eu venho de um país de terceiro mundo, estou habituado a esperar. Então, não foi nada de novo para mim. Sim, tive de esperar um pouco mas não foi assim tanto.

A verdade é que, se comparamos este processo com o de obtenção de autorização de residência para estrangeiros que vêm trabalhar para Portugal – como Abid, que ouvimos na Parte 2 desta série -, os tempos de espera são muito diferentes.

E há uma outra coisa bastante diferente: se para imigrantes trabalhadores, o reagrupamento familiar acontece só depois de todo o processo estar concluído, investidores Visto Gold podem juntar as suas famílias ao processo, desde o início. Assim, a mulher e as duas filhas de Paolo, de 5 e 7 anos, terão também autorização de residência, apesar de esperarem alguns meses mais.

Paolo Borromeo:
Mas, sabes, não posso discutir com eles porque cada país tem a sua maneira de fazer as coisas e só temos de respeitar isso. Não faz sentido tentar discutir quem está certo e quem está errado. Tens de aceitar, porque é assim que aqui fazem as coisas.

III

Desde 2012 que a Lei de Estrangeiros possibilita a concessão de autorizações de residência para atividades de investimento. Na altura, em plena crise e com a intervenção da Troika, foi alterada para facilitar o investimento estrangeiro no país. O programa de “Vistos Gold”, inspirado em vários outros programas em vigor em países da União Europeia, foi defendido e apresentado por Paulo Portas, na altura Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, que achava uma loucura recusar o dinheiro estrangeiro que o programa poderia captar.

Em março de 2015, a poucos meses de abandonar o cargo, falou assim na Assembleia da República:

Paulo Portas:
Os chamados Vistos Gold são importantes para a economia nacional. Seria insano recusar esse investimento estrangeiro. E seria até abstruso oferecer tamanha criação de riqueza a qualquer um dos 14 países estrangeiros que, na Europa, concorrem com Portugal com regimes semelhantes ou até iguais aos chamados Vistos Gold.

Em 2012, quando os Vistos Gold foram criados, as regras eram simples: transferir 1 milhão de euros para o país ou  criar 30 postos de trabalho ou comprar casas ou terrenos num valor igual ou superior a 500 mil euros dava direito a visto. Mas a Lei de Estrangeiros foi-se alargando e, hoje, as possibilidade são imensas. Basta cumprir uma das seguintes condições – estou a cito:
“i) Transferência de capitais no montante igual ou superior a 1 milhão de euros;
ii) Criação de, pelo menos, 10 postos de trabalho;
iii) Aquisição de bens imóveis de valor igual ou superior a 500 000€;
iv) Aquisição de bens imóveis, cuja construção tenha sido concluída há, pelo menos, 30 anos ou localizados em área de reabilitação urbana e realização de obras de reabilitação dos bens imóveis adquiridos, no montante global igual ou superior a 350 000€;
v) Transferência de capitais no montante igual ou superior a 350 000€, que seja aplicado em atividades de investigação desenvolvidas por instituições públicas ou privadas de investigação científica, integradas no sistema científico e tecnológico nacional;
vi) Transferência de capitais no montante igual ou superior a 250 000€, que seja aplicado em investimento ou apoio à produção artística, recuperação ou manutenção do património cultural nacional (…)
vii) Transferência de capitais no montante igual ou superior a 350 000€, destinados à aquisição de unidades de participação em fundos de investimento ou fundos de capitais de risco (…)
viii) Transferência de capitais no montante igual ou superior a 350 000€, destinados à constituição de uma sociedade comercial com sede em território nacional, conjugada com a criação de cinco postos de trabalho permanentes (…)”

Os primeiros anos trouxeram resultados impressionantes, como se gabava Paulo Portas, em outubro de 2014:

Paulo Portas
Nós tínhamos previsto no primeiro ano, em velocidade cruzeiro, 200 milhões de euros, atingimos 300 milhões de euros de investimento no nosso país. Para 2014, tínhamos previsto 500 milhões de euros, o que já era uma subida considerável e, neste momento, ainda faltam três meses para o ano terminar, e já estamos em 700 milhões de euros, o que significa, outra vez, ultrapassar, e em muito, as metas fixadas.

Desde que foram criados e até março de 2019, atribuíram-se 7.291 Vistos Gold, a grande maioria através da compra de imóveis. De todos os vistos concedidos, 6879 foram-no por causa da compra de casas ou terrenos. Só 15 por causa da criação de postos de trabalho, 0,2%.

A facilidade com que se pode trazer a família através da possibilidade de reagrupamento familiar, fez com que mais 12.413 pessoas tivessem autorização de residência. No total, quase 20 mil pessoas ganharam assim direito a residir em Portugal e a circular livremente por todos os países da União Europeia.

Até março de 2019, o Estado angariou quase de 4,5 mil milhões de euros. Desse valor, 90% tem que ver com a aquisição de bens imóveis. É da China que vem a maioria do dinheiro e dos investidores: 4180 até final de março. Em segundo lugar, mas a uma grande distância, estão investidores brasileiros, 711, à frente de cidadãos da Turquia (331), África do Sul (286) e Rússia (254).

David Poston:
O meu nome é David Poston, trabalho para a Portugal Homes. Sou um dos co-fundadores e trabalho intermitentemente no mercado português, desde 2005.

Foi David Poston que recebeu Paolo Borromeu quando este decidiu investir no país. Veio pela primeira vez a Portugal em 2004, durante o campeonato europeu de futebol. Apaixonou-se pelo país e decidiu que tinha de vir para cá viver. Começou por trabalhar no mercado imobiliário do Algarve, em 2005, e, em 2017, co-fundou a Portugal Homes com Gary Harland, seu sócio.

A Portugal Homes é uma empresa de imobiliário focada no mercado dos Vistos Gold, de onde vem a maioria dos seus clientes. A sua equipa, sediada em Lisboa, trata do processo de aquisição de título de residência desde o início até ao fim: encontra-se com os clientes nos países de origem, trá-los a Portugal, organiza visitas a imóveis à venda, apresenta os investidores a firmas de advogados e, já depois do investimento estar feito, ajudam na remodelação e manutenção do imóvel, e ainda servem de representantes fiscais em Portugal.

O processo de obtenção de Visto Gold é bastante simples: em primeiro lugar, o investidor tem de criar uma conta num banco português, adquirir o imóvel ou fazer o investimento e, depois, submeter o pedido de autorização de residência online, na plataforma do SEF, juntamente com certidão de nascimento, registo criminal e, se quiser obter residência para a sua família, os mesmos documentos para filhos menores, esposa ou esposo, pais e sogros.

David Poston:
Desde o momento em que faz a candidatura online, normalmente são 30 dias até ter uma resposta do SEF. Se os documentos tiverem sido aceites e tudo estiver certo vão ser convidados a regressar a Portugal para fazer testes biométricos.

Ao contrário de imigrantes trabalhadores, a maior parte dos investidores de Visto Gold não espera em Portugal pelo título de residência. Voltam para os seus países de origem e apenas marcam nova viagem quando o SEF agenda os testes biométricos.

David Poston:
A partir desse momento, depende. Se fizeres os testes biométricos em Lisboa, demora cerca de 6 ou 7 meses até teres o visto. Se fores ao Porto ou ao Algarve são 3 meses, é muito mais rápido.

Se o processo para obtenção de autorização de residência através do Visto Gold é bastante mais simples do que para um imigrante trabalhador, com muito menos barreiras legais e até menos tempo de espera, há uma coisa que refugiados, imigrantes e investidores parecem estar de acordo: na crítica ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

David Poston:
É muito difícil, eles fazem com que as coisas sejam um pouco mais difíceis do que poderiam ser.

Muito mais difícil do que noutros países da União Europeia, diz David.

David Poston:
Então, eles fizeram o investimento, fizeram tudo o que o governo pediu. Entregaram todos os documentos e depois esperam 12 a 15 meses para ter o visto aprovado.

Ricardo Esteves Ribeiro:
Então o processo demora mais de 2 anos?

David Poston:
Sim, desde que investem, sim. Estava a demorar um ano e meio, dois anos até terem o cartão e poderem viver aqui ou viajarem livremente.

No decorrer desta reportagem, enviámos um email ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a perguntar quanto tempo demora, em média, a autorização de residência para Vistos Gold. A resposta foi a seguinte: “De acordo com atual Lei Geral de Estrangeiros o prazo de instrução dos processos completos é de 3 a 6 meses, caso se trate de concessão ou renovação, podendo ser prorrogado em casos de maior complexidade. A duração do processo está também condicionada à apresentação dos documentos necessários por parte dos interessados.”. Ainda assim, a resposta não permite perceber se o prazo legal é ou não cumprido e qual o tempo médio real para a concessão de um Visto Gold.

A partir do momento em que o processo termina, o investidor fica com autorização de residência durante um ano, renovável mais duas vezes, por dois anos cada. Para a renovação, apenas é necessário que as condições se mantenham (registo criminal limpo, por exemplo), e que passe 7 dias seguidos ou interpolados, por ano, em Portugal. Findos os 5 anos, a autorização de residência pode transformar-se em permanente e é possível candidatar-se à nacionalidade portuguesa.

O programa de Vistos Gold está presente em  mais outros 19 países da União Europeia. Em três deles – Malta, Bulgária e Chipre -, é possível obter diretamente um passaporte e, na prática, a cidadania. Mas, para David, o programa em Portugal é o mais apetecível.

David Poston:
Para mim, o programa aqui é muito mais fácil e simples. Podes investir 500 mil euros ou a opção reduzida, de 350 mil. Existem muitos controlos para obviamente garantir que o registo criminal está em condições. Mas depois só tens de passar sete dias por ano no país e é um visto de cinco anos. Não é uma solução rápida para obter um passaporte, como acontece em Malta ou no Chipre mas, para mim, é um programa melhor, no geral. E a cidadania portuguesa é das melhores cidadanias para ter no mundo.

Ricardo Esteves Ribeiro:
Porque dizes isso?

David Poston:
Bem, não estiveram envolvidos em nenhum conflito, não existem ameaças terroristas em Portugal, não estiveram na Segunda Guerra Mundial. É um país muito neutro. É acolhedor…

IV

Para Carlos Coelho, eurodeputado pelo PSD e nº 7 da lista do partido às eleições europeias, o problema não é existirem Vistos Gold, mas antes a falta de controlo na atribuição desses títulos.

Carlos Coelho:
Bem, vamos cá ver. A questão dos Vistos Gold é saber se é legítimo ou não o Estado ter instrumentos que facilitem a obtenção de investimento estrangeiro. Portanto, se há um investidor que diz, eu quero ir ao vosso país para fazer investimento, eu não vejo nenhum problema em que se facilite a vinda dessa pessoa. O que eu acho mal é que essa pessoa possa vir sem controlos de segurança. Como eu disse na minha intervenção aqui no Parlamento Europeu ainda há uma semana, eu não quero que um criminoso russo, por falta de controle, disfarçado de investidor com Visto Gold, acabe por ficar com Visto Gold ou na Roménia ou em Portugal.

Ricardo Esteves Ribeiro:
Ou com cidadania num dos sítios onde é possível ter cidadania.

Carlos Coelho:
Mas isso a cidadania é mais complicado. Acho que a cidadania é revoltante. Atribuir a cidadania contra investimento é vender o título de cidadão, e eu acho isso sobre o ponto de vista dos princípios, revoltante. Os Vistos Gold não são isso. Os Vistos Gold é facilitar a entrada no país de alguém que vem investir. De certa forma, aquilo que nós fazemos em nossa casa. Quando temos um visitante queremos tratar bem e pomos a passadeira vermelha, corremos a abrir a porta. Portanto, é uma atitude de facilitar a entrada na nossa casa de alguém que nós vamos a precisar por uma razão legítima. Eu isso não vejo problemático. O que vejo problemático é que isso nos leve a fechar os olhos ao passado dessa pessoa, à intenções dessa pessoa. Que seja possível, por exemplo, a um mafioso russo, sobre o qual recai um mandato de detenção europeu, que nós não devíamos deixar entrar no território, e porque vem fazer um investimento, nós fingimos que não sabemos e deixamos. Isso eu acho que é de evitar, e foi por isso que propus no Sistema de Informação de Vistos, a sujeição a 15 controlos de segurança também dos Vistos Gold. Eu acho que isso vai fazer a diferença e espero que o Conselho aprove aquilo que o Parlamento já aprovou.

O que o parlamento já aprovou foi um relatório de Carlos Coelho que promove uma alteração legislativa ao regulamento do VIS, o Sistema de Informação sobre Vistos, um mecanismo de intercâmbio de dados entre países do espaço Schengen.

Carlos Coelho:
Há na União Europeia 20 países que têm sistemas parecidos com os Vistos Gold. Eram emitidos com… praticamente sem nenhum controlo de segurança e, na reforma do visto, no Sistema Europeu de Vistos, de que eu fui relator e que foi aprovado agora alterámos isso. Pusemos a exigência de sujeição de requerentes de vistos Gold a 15 controles de segurança contra 7 bases de dados europeias.

Ricardo Esteves Ribeiro:
Interpol, entre outras.

Carlos Coelho:
Entre outras, Sistema de Informação de Schengen, etc. Isso garante um maior controle de Vistos Gold. Curiosamente, não foi fácil fazer passar isso cá, porque a maior dos socialistas europeus estavam contra essa minha proposta. Justiça se lhe faça, os socialistas portugueses, e particularmente a deputada Ana Gomes estiveram do lado certo da história. Mas isto não foi fácil, hum. Mas o Parlamento Europeu aprovou, esta é a nossa posição e agora esperemos que o Concelho nos dê razão. A negociação entre o Parlamento e o Concelho vai continuar e vai decorrer, por razões de calendário, já no próximo mandato parlamentar.

A proposta foi aprovada pelo Parlamento Europeu no passado 13 de março, com 522 votos a favor, 122 contra e 31 abstenções. Agora, seguirá para as negociações entre o Conselho, o Parlamento e a Comissão Europeia.

Dos 21 eurodeputados portugueses, apenas 4 votaram contra: Marisa Matias, do Bloco de Esquerda, e os três deputados do PCP, incluindo João Pimenta Lopes, número três da lista da CDU às eleições europeias deste maio.

João Pimenta Lopes:
O que esta Diretiva fez, foi alargar as restrições nacionais de países terceiros ao aumentar o nível de controlo através, por exemplo, de reconhecimento facial, de recolha de dados datilográficos… Aumentar o nível de controlo de de restrições à possibilidade de aceder a vistos, aumentar os custos, alargar as idades, portanto entre os 6 e os 70 anos no nível e controlo.

Ricardo Esteves Ribeiro:
Sujeita as pessoas a 15 controles de segurança, não é?

João Pimenta Lopes:Dizia-se, por exemplo, um dos comentários era que “bom, em Portugal, no cartão de cidadão as crianças já fazem a recolha da impressão digital desde os seis anos”. Nós estamos a confundir um documento de identificação de um país com um documento temporário de presença num país. Quero dizer, eu se hoje for a um conjunto muito significativo de países, fruto de acordos que estão estabelecidos, na maior parte deles, basta apresentar o cartão de identidade. Não vou preencher nenhum formulário, não vou colocar a minha impressão digital em lado nenhum. E, portanto, é quase uma lógica de criminalização e de apontar como suspeitos aqueles que são… os que vêm do exterior.

Na prática, sendo esta proposta de regulamento aprovada, vai ser mais difícil entrar na Europa para quem é de um país terceiro. Propõe-se o aumento do controlos de segurança para quem venha para o espaço Schengen, seja como turista ou para aqui residir.

Passarão a ser cruzados dados em várias base de dados internacionais, alargar-se-ão as idades a quem são feitos testes biométricos. Por exemplo, crianças a partir de seis anos passarão a ter de entregar a sua impressão digital e será feito reconhecimento facial.

Embora Carlos Coelho defenda estas alterações como algo que trará regras mais apertadas para os diversos regimes europeus de vistos Gold, a verdade é que não há qualquer alusão aos Vistos Gold ou a autorizações de residência para atividades de investimento nesse regulamento. As mudanças legislam sobre vistos e autorizações de residência no geral.

Ricardo Esteves Ribeiro:
Esta peça legislativa ainda não está… foi aprovada pelo Parlamento Europeu mas ainda está no seu processo, ainda precisa de ser aprovada pelo Conselho.

João Pimenta Lopes:
É um mandato.

Ricardo Esteves Ribeiro:
Mas sendo aprovada, ela vai ter implicações não só para investidores que querem vir para Portugal ou para outro país qualquer que tenha Vistos Gold mas também nas milhares de pessoas indocumentadas que estão em Portugal e que precisam de ser.. e que estão à espera de autorização de residência, alguns deles há 2, 3, 4, 5, 6 anos?

João Pimenta Lopes:
A nossa análise é que a questão dos Vistos Gold foi um faits-divers, esses continuarão a ter as facilidades que, até agora, tiveram de ultrapassar restrições. O alvo desta diretiva foi precisamente esses milhares de potenciais trabalhadores, de pessoas que estão à procura de estabilizar a sua vida ou, até, a possibilidade de pessoas que não vêm trabalhar mas possam vir para efeitos turísticos e que portanto tenham justificação para estar em períodos de menor duração no país. Ou seja, criar limitações, criar barreiras, alimentar mais uma vez a Europa dos muros e das restrições.

Ana Gomes, eurodeputada pelo PS que não se recandidatará nestas eleições europeias, votou a favor desta alteração ao regulamento. Mas, na sua opinião, por muito que o combate ao crime internacional seja feito com mais controlo – que ela defende -, o sistema de Vistos Gold sofre de um problema de princípio.

Ana Gomes:
E, sobretudo, há a questão de fundo: é a imoralidade do sistema. Quer dizer, e aqui não me refiro a Portugal, refiro-me a toda a União Europeia. Quando vários países procuram, justamente, sem o dizer, mas erguer a Europa Fortaleza que, obviamente, nunca será sustentável, é completamente imoral que, relativamente a migrantes ricos abram as portas e abram as portas com canal dourado em troca de dinheiro, pondo em causa a integridade do sistema de Schengen, pondo em causa a segurança coletiva. Porque, obviamente, estes são esquemas para branquear capitais, são esquemas para a importação de criminalidade e de criminalidade organizada e, portanto, são de uma imoralidade e de um perigo tremendo.

Na sua opinião, o mecanismo de Vistos Gold português é dos mais graves da Europa.

Ana Gomes:
No nosso país, o esquema é perverso porque, obviamente, há toda uma indústria que se desenvolve à conta dos Vistos Gold que é uma indústria, obviamente, de corrupção de esquemas de… Como já disse, não há due diligence. Desde advogados, contabilistas, imobiliárias, não fazem a due dilligence a que estão obrigados nos termos das diretivas europeias contra branqueamento de capitais e financiamento de terrorismo mas, efetivamente, não o fazem. As autoridades nacionais também não o fazem, o controlo é mínimo, não é avaliado e, sobretudo, o que é extraordinariamente grave no nosso país é o secretismo total de que beneficiam quem recebe Vistos Gold e, mais, as pessoas que conseguem autorização de residência através do esquema de reunificação familiar.

Em outubro de 2018, um relatório com o nome “Escapadela Europeia — Dentro do Obscuro Mundo dos ‘Vistos Gold’” apresentado pela Transparência Internacional e pela Global Witness, Organizações Não-Governamentais contra a corrupção, acusava Portugal e outros países da UE de não terem critérios claros para a aplicação do programa e de não terem mecanismos de verificação prévia – due-diligence, em inglês – necessários para garantir o combate à corrupção.

Ana Gomes:
A opacidade é total. Até países como Malta e Chipre, onde a forma de Visto Gold é do mais grosseiro que há porque tem a ver com a venda direta da cidadania – em Portugal é uma venda às prestações, porque ao fim de cinco anos as pessoas podem requerer nacionalidade. Mas até Malta e Chipre que vendem diretamente a nacionalidade publicam os nomes das pessoas que ou são candidatos a ter Vistos Gold (caso de Chipre), ou obtiveram os Vistos Gold (caso de Malta). E em Portugal, a opacidade é total, eu fartei-me de pedir ao anterior governo, tenho-me fartado de pedir ao atual governo, pública e privadamente, por escrito, que ao menos me dêem, pelo menos a mim, as listas destas pessoas, para eu verificar quem são. Os nomes, só peço os nomes. E, perversamente, com base num parecer ignóbil da comissão nacional da proteção de dados, que foi obtido pelo ministro Miguel Macedo, há uma recusa que persiste, neste Governo, de me facultar sequer a mim, já nem digo publicitar – a mim, deputada europeia – as listas dos beneficiários. E eu só tenho uma explicação para isto: é que, obviamente, as autoridades sabem que não teria dificuldade nenhuma em identificar vários cleptocratas ou vários personalidades nada recomendáveis na borda do crime, se não mesmo criminosos a terem beneficiado de Vistos Gold.

Em 2014, uma investigação judicial levou dezenas de pessoas a tribunal, incluindo o ex-ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, por causa da existência de uma rede de tráfico de influências e corrupção ligada à atribuição de Vistos Gold. Miguel Macedo acabou por ser ilibado, em janeiro de 2019, dos quatro crimes de que estava acusado. Manuel Jarmela Palos, ex-diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, foi também absolvido dos crimes de corrupção passiva e prevaricação. Já António Figueiredo, ex-presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, foi condenado com pena suspensa, a quatro anos e sete meses de prisão por dois crimes: corrupção ativa e corrupção passiva. Dois empresários chineses foram condenados a multas por tráfico de influências.

V

Em janeiro deste ano, a Comissão Europeia apresentou, pela primeira vez, um relatório exaustivo sobre os Vistos Gold identificando vários problemas na concessão de passaportes (no caso de Bulgária, Chipre e Malta) ou autorizações de residência, como em Portugal. Diz que, sobre os controlos de segurança, a concessão de Vistos Gold “pauta-se pela falta de informações” e que os Estados-Membros têm “poderes discricionários” na abordagem que fazem nesta matéria. Lê-se também que a Comissão crítica – e cito – “as autorizações de residência obtidas em virtude de um investimento, que exijam apenas uma presença física limitada ou mesmo nula do investidor no Estado-Membro em causa” – por exemplo, a estadia mínima de 7 dias por ano em Portugal -, pois isso pode levar a um “procedimento acelerado para a obtenção da cidadania nacional e, por conseguinte, da cidadania da UE”. Sobre a falta de transparência, a Comissão realça, cito, “falta de transparência e supervisão destes regimes, nomeadamente em termos de monitorização, e a ausência de estatísticas sobre o número de pessoas que obtêm uma autorização de residência através dos referidos regimes.”

Ricardo Esteves Ribeiro:
Que relevância é que teve este relatório nesta altura?

João Pimenta Lopes:
Absolutamente nenhum porque não teve consequências práticas nenhumas, não é? Nós podemos ter todos os relatórios que queiramos de identificação de realidades com as mais concretas e verdadeiras observações. Se depois não se traduzir essa análise em medidas práticas, então estamos só a fazer um ato de ilusionismo para enganar as pessoas.

Ana Gomes:
Digamos que o relatório é bom na descrição do sistema e dos problemas, e claramente diz que há riscos para a segurança coletiva da União Europeia e de cada um dos Estados membros que põe em prática estes esquemas: riscos de branqueamentos de capitais, riscos de infiltração de criminalidade. Identifica os problemas de cada um dos esquemas e em relação ao nosso país é particularmente incisiva sobre a falta de avaliação, a falta de due-diligence e a falta de publicação dos nomes. A Comissão, depois, nas conclusões, é mais tímida e promete constituir um grupo de trabalho para continuar a monitorizar e admite que possa atuar com procedimentos por infração do Direito Europeu, em função dos casos que avalie. Mas não pede a cessação dos esquemas dos esquemas de Vistos Gold.

Já o Parlamento Europeu foi mais longe. No final de março, aprovou com 505 votos a favor, 63 contra e 87 abstenções, um relatório que pedia a revogação – estou a citar – “de forma progressiva e célere todos os regimes de cidadania pelo investimento e de residência pela atividade de investimento”.

David Poston, co-fundador e diretor da Portugal Homes, que ouvimos há pouco, também entende que em alguns países pode haver razões para mais controlo.

Ricardo Esteves Ribeiro:
Achas que isto é uma preocupação justa?

David Poston:
Acho que, nalguns países, sim. Acho que aqui, em termos de registos criminais e de como eles são verificados, acho que não convida criminosos a vir para cá. Acho que há alguma preocupação em alguns países porque é muito fácil contornar as coisas. Eu estive no Chipre, na Grécia e em Malta no ano passado, porque temos alguns clientes que mostraram interesse nessas opções,e é importante conhecermos bem esses mercados. E quando se fala com advogados lá, há sempre maneiras de contornar as coisas, enquanto que aqui é um programa muito direto. Ou cumpres ou não cumpres. Há muita exigência dos bancos, aqui, para verificar de onde o dinheiro vem e como é feito. Portanto, é difícil. É preciso ter cuidado porque se se põem demasiados obstáculos no caminho, as pessoas deixam de vir. Do que eu percebo, a razão porque os Vistos Gold foram lançados foi para trazer indivíduos de alto valor para o país, para ajudar na altura da austeridade, trazendo dinheiro. Porque se pões demasiados obstáculos à frente dessas pessoas, eles vão para outro lado qualquer.

Mas se se poderia pensar que, pela opinião de Ana Gomes, o Partido Socialista seria contra o sistema de Vistos Gold, a verdade é que não é. E a política do Governo mostra-o. Eurico Brilhante Dias, Secretário de Estado da Internacionalização, foi muito claro, quando em março falou ao programa Conversa Capital, da Antena 1 e do Jornal de Negócios.

Eurico Brilhante Dias:
Nós não temos nenhuma medida, nenhum plano para restrições ou para bloquear investimento estrangeiro de qualquer origem.

A Europa Fortaleza de que falámos durante as três partes desta série foi criada desde o início da União Europeia, como parte do seu projeto fundador. Quanto mais se deitaram fronteiras abaixo dentro da UE, mais elas se reforçaram à sua volta. E tudo isso tem vindo a ser solidificado ao longo de décadas: a falta de consenso para a redistribuição de refugiados, a criminalização das ONGs de resgate no Mar Mediterrâneo, os acordos com países como a Turquia para impedir refugiados de chegar ao espaço Schengen, o reforço das fronteiras através da Frontex, ou as barreiras burocráticas e legais à obtenção de autorizações de residência para imigrantes trabalhadores…

Mas o que parece também claro, no aprofundar das políticas da União em relação a quem é de fora, é que há muitos critérios.

Mory Camara só à quarta vez em que tentou atravessar o Mar Mediterrâneo, em barcos de borracha, chegou à Europa. Antes, foi torturado durante meses na Líbia. E mesmo quando foi resgatado em alto mar, teve de esperar mais de uma semana até que aceitassem o seu desembarque. Hoje, em Portugal, continua à espera, desta vez do estatuto de refugiado.

Muhamad Abid Khan veio do Paquistão para Lisboa à procura de uma vida melhor e mais segura que pudesse oferecer às suas filhas. Só quase três anos depois conseguiu ter autorização de residência. Só falta a família. Mas para isso acontecer ele tem de provar que ganha o suficiente. E, por isso, tem dois empregos ao mesmo tempo. Nem ele sabe quando isso será.

Paolo Borromeu, por outro lado, conseguiu autorização de residência ano e meios depois de investir 500 mil euros, sem sequer viver no país.

Nesta União Europeia, enquanto que quem procura uma vida melhor ou, simplesmente procura vida, fica de fora, quem chega com uma mala de dinheiro é sempre bem vindo. A Fortaleza não foi feita para barrar toda a gente – apenas quem não faz falta.

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