opinião

“Um vice fiel? Geraldo Alckmin e a matemática macabra do encarceramento e morte em São Paulo”, por Débora Silva e Jaime Amparo Alves

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Na bandeira da cidade de São Paulo, a insígnia em latim non ducor, duco – “conduzo, não sou conduzido” – expressa o dinamismo da cidade e do Estado como a chamada “locomotiva do país” e, talvez menos explícito, a liderança paulista na consolidação de uma nação para poucos. Como no passado colonial (com as bandeiras e sua cruzada civilizatória de caçar indígenas e negros) ou sob a jovem república (com a chegada dos imigrantes e a consolidação de um poder agrário industrial dos barões do café), nas primeiras décadas deste século, São Paulo também liderou, sob a chamada social-democracia, os rumos de um país desigual e cruel. São Paulo é uma metáfora da crueldade codificada no DNA nacional. Os caciques paulistas atuais, muitos dos quais agora reunidos sob a missão de nos salvar do obscurantismo bolsonarista, lideraram um projeto nacional que resultou na produção em massa da pobreza, do encarceramento e da morte. 

Não há outra figura pública que incorpore com tanto fervor, devoção e espírito messiânico o “lugar” simbólico que São Paulo ocupa como liderança da crueldade nacional como o ex-governador e agora candidato a vice-presidente brasileiro na coalizão liderada pelo Partido dos Trabalhadores, Geraldo Alckmin. O católico fervoroso e agora menos carrancudo candidato arranca aplausos por sua conversão aos valores humanistas, mas não consegue esconder seu currículo de desprezo pelas vidas negras e empobrecidas no Estado que comandou por mais de uma década. Geraldo Alckmin foi capaz de justificar assassinatos e massacres levados a cabo por sua polícia militar com o tecnicismo de que a polícia estava apenas fazendo o seu papel, ou com variadas versões do cinismo populista de que “bandido bom é bandido morto”, como seu comentário “quem não reagiu está vivo”, depois do assassinato de nove pessoas pela ROTA, uma das policias mais letais do país. Nossa matemática macabra, com dados sistematizados pelo Fórum de Segurança Pública, dão conta da escala estratosférica de encarceramento massivo e mortes por agentes policiais sob seu comando. 

Foram 7952 mortes de civis nos seus quatro mandatos — entre 2001 e 2006 e, mais tarde, entre 2011 e 2017 (não contabilizamos aqui os primeiros meses de 2018, quando o ex-governador se licenciou para ser candidato à presidência da república). No último período em que foi governador, a fantástica máquina de produzir mortes registrou um aumento de 96% no número de pessoas assassinadas; ou seja, de 480 mortes em 2011 para 939 vítimas em 2017, quando deixou o Palácio dos Bandeirantes. Em dezembro daquele ano, o então governador podia se orgulhar de ser parte de um projeto político que dobrou a população carcerária do Estado  evoluindo de pouco menos de 60 mil pessoas em 1995, primeiro ano do governo Mário Covas, para quase 230 mil  encarceradas quando o então seu vice e depois governador Geraldo Alckmin deixou o poder. Os números malditos não deixam dúvidas sobre a contribuição de Alckmin para a manutenção, consolidação e expansão de uma velha política da crueldade que nos últimos quatro anos recebeu roupagem nova na versão militarista de Jair Bolsonaro. Nesse sentido, ele é um vice fiel ao projeto antinegro e antipovo do Estado brasileiro.

Sim, por mais dificil que seja admitir, Geraldo Alckmin não é uma aberração estranha ao pacto sangrento que Esquerda e Direita têm estabelecido sob os corpos de jovens pobres e negros que são assassinados pela polícia em São Paulo e no Brasil. Basta que lembremos as ações letais da polícia baiana celebradas pelo governador Rui Costa, do Partido dos Trabalhadores, como um golaço – como no caso do massacre do cabula –, ou as barbáries produzidas pela polícia cearense — por exemplo, a chacina do Curió — sob a liderança do então governador também petista Camilo Santana. No mesmo sentido, faltou vontade política das administrações federais petistas para enfrentar o monstro da violência policial. Em seus quinze anos no Palácio do Planalto, nem Lula da Silva nem Dilma Rousseff se empenharam em controlar as forças policiais, apesar das sucessivas denúncias dos organismos de direitos humanos das Nações Unidas e dos apelos dramáticos das mães de vítimas do Estado. Além disso, os governos petistas foram também “eficientes” no aumento do gasto público com os aparatos de repressão policial e de expansão contínua do Estado penal. Não por coincidência, seus governos duplicaram o encarceramento em massa, já que se em 2003 eram pouco menos de 308 mil pessoas presas, em 2016 quando Dilma Rousseff foi deposta já eram 726 mil. Hoje são quase  900 mil vidas sequestradas pelo estado penal brasileiro. 

De fato, as afinidades cruéis que põem Geraldo Alckmin e a Esquerda brasileira no mesmo palanque – o governador até ja foi denunciado na ONU por violação de direitos humanos – causam desconforto às lutadoras e lutadores sociais na urgente tarefa de derrotar o bolsonarismo, mas não deveriam escandalizar-nos, porque o sangue negro, pobre e indígena sempre figurou na conta macabra da governabilidade institucional e do fortalecimento da democracia brasileira. É por isso que as Mães de Maio – um coletivo que une mães de quase 600 jovens predominantemente negros e pobres assassinados pelo Estado em maio de 2006 – têm insistido em desmistificar o Brasil como democracia das chacinas e a favela como um espaço necropolítico absoluto, onde o poder estatal de matar não reconhece freios juridicos ou limites éticos. O humanismo e as políticas de inclusão social e de promoção da diversidade colapsam frente a um imperativo odioso e autoritário de pacificar o país com a paz do cemitério. 

Se atribui a Sueli Carneiro a frase “entre Esquerda e Direita, sou negra”. Nossa responsabilidade cívica nos pede prudência em tempos de intensificação das estratégias cruéis da cruzada evangélica, militarista e odiosa do bolsonarismo contra o nordestino Lula da Silva e o que ele representa em termos de mudança e valores republicanos. Ainda assim, a frase é um convite a pôr os pontos nos “is” em um debate simplista e oportunista que estabelece uma falsa oposição entre as estratégias bélicas da Direita e da Esquerda contra a população pobre e negra nas periferias brasileiras, onde um terror estatal ordinário questiona a normalidade democrática que Geraldo Alckmin e a esquerda petista buscam “recuperar” e preservar depois das eleições. Recuperar e preservar para quem? Que Bolsonaro e a “república das milícias” sejam uma aberração moral na política brasileira dos últimos anos não borra a verdade histórica inscrita nos corpos racializados e nas paisagens urbanas das periferias brasileiras: o regime de exceção imposto pelo terror policial é a regra. Da colônia aos tempos atuais, o Brasil é nada mais que um experimento macabro ou, nas palavras de Darcy Ribeiro, “uma máquina de triturar gente”. Neste sentido, o simbolismo da presença inconveniente de Alckmin no “time de Lula” é ainda maior. Ele representa a confirmação de um consenso suprapartidário de governança necropolítica. As politicas macroeconômicas e inclusivas comprovadamente progressistas – pelo menos em comparação aos ditames cruéis do governo atual e o desprezo estrutural do capital pelos pobres – propostas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e a coalizão liderada por Lula da Silva têm pouca ou nenhuma relevância se o PT e os do “time de Lula” não estiverem dispostos a responder uma questão central posta pelos movimentos sociais negros e de direitos humanos à esquerda da Esquerda: quais são as estratégias propostas para proteger a vida dos jovens pobres e negros contra o terror policial? O terror policial será enfrentado como tal ou haverá justificativas e aceitação de um regime paralelo de direitos e de exceção de acordo com a biografia, antecedente criminal, cor e procedência geográfica das vítimas? O novo governo terá vontade política de construir um pacto nacional pelo fim da polícia como ela é? Haverá um esforço contínuo e efetivo de desencarceramento e desmilitarização da força pública? Muitos dos desafios que se apresentam a um possível governo Lula 3.0 deverão ser respondidos em diálogo com estruturas governamentais em diferentes níveis da administração pública, mas a presença de Geraldo Alckmin no palanque petista e a ausência de um debate político urgente sobre a desmilitarização, desmonte e controle público deste monstro deixam poucas dúvidas sobre a continuidade sinistra – entre as forças de Esquerda, Centro e Direita – na consolidação do terror policial e do encarceramento como fundantes da democracia penal brasileira.

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