Opinião

“Um jacarandá chamado Sampaio”, por Pedro Miguel Santos

Extravasou do largo o jacarandá
Com as suas flores miúdas
ocupa agora toda a manhã

O Jacarandá”, Jorge Sousa Braga em “Fogo sobre Fogo”, 1991

Há qualquer coisa de exótico em políticos que dizem a verdade. Não que acredite na visão estafada e caricatural de que estão sempre a mentir, mas cheira-se o desassombro de quem diz as coisas como são, sem cálculo. Nos últimos dias, várias histórias têm sido recordadas sobre essa qualidade intrínseca ao ex-presidente Jorge Sampaio. José Pedro Castanheira, jornalista, que escreveu a biografia do Presidente (a seu pedido), testemunhou essa fibra moral. Nas primeiras páginas do volume I, “História de uma Geração”, dá conta da empreitada que foi mergulhar no arquivo pessoal de Sampaio, aceder a cadernos e papéis íntimos, remexer nas provas de uma intensa vida pública através do seu lastro privado. “Quando acedi a que escrevesse a minha biografia”, dizia Sampaio, “o principal compromisso que assumi foi com a verdade, pessoal e histórica. Não lhe iria mentir – nem que fosse por omissão!” Esta fixação com o que é virá de longe, da sua educação e feitio. Menino privilegiado, passou parte da sua infância nos Estados Unidos da América e em Inglaterra. A mãe, Fernanda Bensaúde Branco, era professora particular de inglês; o pai, António Arnaldo de Carvalho Sampaio, foi médico, especialista em Saúde Pública, e um dos grandes impulsionadores do Programa Nacional de Vacinação. Em garoto, teve acesso a cultura, estudou música, leu livros. Foi, desde cedo, um defensor da Democracia, seja no papel que teve nas lutas estudantis de 1962, seja ainda quando defendia, como advogado, presos políticos do fascismo. Não era da maçonaria, não vinha das Forças Armadas, nunca foi um homem dos aparelhos partidários, nem era católico. Assumia-se “republicano, socialista, laico”. Parece-me, foram essas raízes a grande fundação do que, para mim, foi o melhor Presidente da República desde o 25 de Abril. 

O seu percurso na defesa da Liberdade é marcante. Mas, naquilo que é a ideia de um país que tem de se afirmar pelo que é, não pela mitificação do que foi, Sampaio teve um papel preponderante – foi o Chefe de Estado que formalizou o “fim do Império” português: entregou formalmente Macau à República Popular da China e lutou, como poucas vezes se viu na nossa diplomacia, pelo direito dos timorenses ao voto, em referendo, para que pudessem escolher a autodeterminação ou a continuidade na Indonésia. Não é pouco. 

No caso de Macau, é certo que as negociações tinham mais de uma década (a Declaração Conjunta fora assinada em 1987, por Cavaco Silva), mas não deixa de ser desarmante ver a cerimónia de transferência de soberania, a 19 de dezembro de 1999. Um Chefe de Estado emocionado, mas com um discurso seguro, que terminava assim: “Numa sociedade internacional em que a todos importa o destino de cada um, Portugal continuará solidário com Macau, empenhado no seu futuro, e certo de que, também aqui, a democracia e a liberdade são realidade insubstituível e penhor da paz e do progresso para todos os povos.” Infelizmente, Macau já viveu melhores dias no que às liberdades diz respeito. No dia do enterro de Jorge Sampaio (12/09), a Assembleia Legislativa de Macau foi a votos, numas eleições marcadas pela exclusão de listas de candidatos vistos pelo Partido Comunista Chinês como demasiado pró-democracia. A mesma Região que seria, a par de Hong Kong, o exemplo da fórmula “um país, dois sistemas” é, na verdade, cada vez menos um espaço de liberdade, como os jornalistas em Macau têm denunciado. Duvido que o tema passasse com a ligeireza que passa se Sampaio estivesse na Presidência. É que a tradição da nossa política externa, de passar sempre entre os pingos da chuva ou alinhar com a defesa de Direitos Humanos só quando dá jeito, não era do agrado de Sampaio. 

Quando, em 1996, o Prémio Nobel da Paz foi atribuído a Ximenes Belo, bispo da diocese católica de Díli, e a José Ramos Horta, porta-voz da resistência timorense, pela contribuição de ambos para uma solução pacífica para a ocupação de Timor-Leste, Sampaio está presente na cerimónia e é entrevistado pela CNN, em direto, num debate com os laureados e os responsáveis políticos da Indonésia. É, sob todos os títulos, uma das maiores e mais dignas intervenções de um Chefe de Estado português na defesa de uma causa, de princípios, na exigência ao mundo do respeito pelos Direitos Humanos. E Sampaio fê-lo com uma classe, uma certeza e uma verdade a que não estávamos – nem estamos – habituados: não gritou, não amochou, foi firme, sendo cordato, sem abdicar de nenhuma agência ou justeza do que defendia, em nome de Portugal e dos timorenses. 

Anos mais tarde, em 2003, já no seu segundo mandato, Sampaio passa por outra grande prova de verticalidade. Durão Barroso, na altura primeiro-ministro, informa-o com apenas 48 horas de antecedência de que a ilha Terceira, nos Açores, será palco da vergonhosa Cimeira das Lages, onde George W. Bush (Presidente dos Estados Unidos da América), Tony Blair e José Maria Aznar (primeiros-ministros do Reino Unido e de Espanha, respetivamente) decidem a invasão do Iraque. Sampaio não pôs os pés nos Açores, não foi receber Bush (que, como ele, era Chefe de Estado) e apenas anuiu o encontro internacional porque Barroso lhe garantiu que a Cimeira era para preparar a paz. Não foi nada disso, claro. Três dias depois, começou a guerra do Iraque, numa ação fora do quadro das Nações Unidas contra a qual o Presidente sempre foi contra – contra a invasão e contra o envio de tropas portuguesas para o Iraque. Durão Barroso serviu de mordomo e combinou tudo nas costas da Presidência da República. Sabemos o que aconteceu depois: no Iraque morreram milhares de inocentes, criou-se uma crise humanitária e política que dura até hoje, e ainda não se encontraram as armas de destruição maciça que supostamente lá existiam; já Durão Barroso foi premiado pelo envolvimento de Portugal numa invasão de um país estrangeiro com a Presidência da Comissão Europeia. 

A ligação a ideias de humanidade, à verdade e à decência fazem parte do Sampaio que aprendi a respeitar. Ainda mais quando o seu percurso nos mostra essa constância. Em 1995, quando se candidatava à presidência da República, Sampaio tinha como diretor de campanha António Costa, o atual Primeiro-Ministro. Numa entrevista dada em outubro desse ano ao Semanário, Daniel Adrião – sim, é o mesmo Daniel Adrião, militante do PS, único rosto interno da oposição a António Costa nos últimos dois congressos do partido – perguntou a Sampaio em quem tinha votado nas primeiras eleições presidenciais, já em democracia. E o candidato a Belém, ainda que tivesse hesitado, disse: “Votei em Otelo”. António Costa ficou piurso, sabia que a resposta ia ser aproveitada pelos adversários para chamarem radical de Esquerda a Sampaio: “Bastava ter dito que já não se lembrava, porque teve de dizer aquilo?”. A resposta foi curta e grossa: “Disse que votei em Otelo porque é verdade! Cheguei aqui sendo o que sou, não vou mudar!”

Assim, sem calculismos fúteis, foi Sampaio. Despido do que não interessa para que sobressaia apenas o que faz sentido, a cada momento. Como um jacarandá. Gosto de jacarandás. São árvores diferentes, exóticas, originárias das regiões secas da América do Sul (Argentina, Bolívia e sul do Brasil) mas que, em Lisboa, parecem ter sempre feito parte da paisagem, apesar de só terem sido introduzidas no país no início do século XIX. Gosto do cheiro perfumado; da viscosidade das flores, que a tudo se agarram; da exuberância da sua cor; do contraciclo vegetativo – as folhas aparecem já depois de brotarem as inflorescências. Comecei a lembrar-me de todos os sítios de Lisboa ligados a Sampaio e há uma surpreendente coincidência em haver exemplares de Jacaranda mimosifolia em vários deles: na Tapada das Necessidades, em Lisboa, onde Sampaio ocupava a Casa do Regalo, seu escritório oficial; no Largo do Rato e nos jardins do Palácio da Praia, sede do Partido Socialista, que liderou; no Palácio de Belém, residência oficial do Presidente da República Portuguesa; no Largo do Correio Mor, na capital, mesmo em frente à sede da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, formalmente criada no seu mandato; e, um pouco por toda a capital, cobrindo a cidade de um azul-lilás que anuncia o verão e o tempo bom.

Assim foi Sampaio: um jacarandá na política, que ocupou toda a manhã. 

Fotografia: Jorge Brilhante, Museu da Presidência da República

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