Direito à Habitação

Bairro 6 de Maio: ordem para limpar

Polícias com proteções nas duas canelas, nos joelhos, no abdómen, nas costas, e na cabeça, com capacetes presos pelo queixo, e com máscaras que lhes deixavam apenas os olhos e a boca à mostra. Sem identificação, quase todos. Excepção feita ao comandante da operação, Resende Silva, de nome ao peito. Com espingardas automáticas nas mãos e pistolas no bolsos. Cercavam o bairro, não deixando ninguém entrar e ninguém sair. Parecia um estado de sítio, uma “zona de guerra”.

Atrás deles, uma série de casas amontoadas entre o entulho das paredes e dos telhados outrora demolidos, permaneciam como se tivessem sido bombardeadas, tal e qual as reportagem que aparecem de quando em vez no telejornal. Viam-se perfeitamente partes daquilo que antes tinha sido uma sala de estar, um quarto ou uma cozinha meia desfeita, onde agora se pendura a roupa a secar.

Ninguém entrava e ninguém saía. Quem lá morava estava à porta do bairro, do outro lado da estrada. Umas preocupadas, sem saber se a sua casa seria a próxima a cair. Outras irritadas, porque queriam ir para o trabalho, mas a chave do escritório tinha ficado do lado de dentro. Outras desconsoladas por, mais uma vez, a luz e a água terem sido cortadas dentro do bairro. Outras com o ar de enfado de quem já tantas vezes sofreu disto. Era normal.

O que parecia também normal era o que acontecia no centro social que, no meio de tanto aparato, funcionava como se nada fosse, entretendo crianças nas férias da Páscoa. As crianças entravam de mão dada com o pai ou a mãe e eram recebidas com sorrisos pelas funcionárias do centro. Tudo normal. Tanto para as crianças como para os pais. Não porque não percebessem o que se estava a passar – sabiam muito bem – mas porque tudo aquilo já acontecera variadíssimas vezes.

Esta “zona de guerra” aconteceu a menos de 20 minutos do Rossio, na Amadora, no passado dia 3 de Abril. Por ordem da Câmara Municipal da Amadora, mais uma (de muitas) série de demolições e despejos aconteceram no bairro 6 de Maio. A polícia entrou antes das nove da manhã, batendo à porta de alguns escolhidos que tinham de esvaziar a sua casa. Edmilson Pinto disse-nos “Estava dentro de casa praticamente a dormir. Estava a dormir, senti pessoas a bater à porta, para levantar do quarto. Abri a porta e encontrei as autoridades. Falaram comigo: ‘São as autoridades, tens de arrumar as tuas cenas e sair porque…Porque a casa vai ser demolida.’ Não tenho aviso, não tive aviso, não me enviaram aviso.” Assim, sem aviso.

Cátia Silva, outra moradora, contou: “Eu acho que se fosse num outro sítio, se fosse na Lapa, ou na Graça, ou em Lisboa, ou noutro sítio qualquer, eles não iam atuar desta forma, não é?”, é “discriminação social e racial”. A maior parte dos moradores deste bairro têm ascendência africana e muitos nasceram lá. Em Cabo Verde, na Guiné, alguns em São Tomé, e vieram para Portugal depois da descolonização, à procura de uma vida melhor. O que encontraram foram sobretudo trabalhos precários e mal pagos. Na construção civil, durante o “boom” das obras públicas na década de 90, ou no grande mercado do trabalho doméstico. Sem contratos, claro.

Instalaram-se no bairro 6 de Maio, onde já várias famílias viviam. E foi aí que criaram, com as suas próprias mãos, as casas onde habitam hoje, mais de 20 anos depois. A casa do Edmilson, por exemplo, foi construída entre o ano de 1996 e 97 pelos seus pais, que já de lá saíram. É lá que vive hoje. À Cátia aconteceu o mesmo. Os pais construíram a casa onde ela vive, e vivem agora fora do bairro, em França.

As demolições que aí tiveram lugar no passado 3 de Abril que deixaram o Edmilson desalojado, e poderão, um dia, deixar a Cátia sem casa também, são feitas ao abrigo do Programa Especial de Realojamento, aprovado no ano de 1993, e por implementar na sua totalidade, 25 anos passados. Muitos outros bairros foram já destruídos, como as Fontaínhas, o Santa Filomena ou o Estrela de África.

O plano tinha como objetivo acabar com os bairros de barracas e de génese ilegal nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e a maior parte deles foram já erradicados. Ainda assim, mais de duas décadas depois, alguns bairros como o 6 de Maio, continuam por ser demolidos e algumas das pessoas que lá moram ainda esperam por ser realojadas. Com o passar dos anos, obviamente, quem era criança em 1993, passou a ser mãe ou pai. Quem não tinha ainda nascido por essa altura, pode hoje ter 25 anos. E quem chegou na década de 1990 ou 2000, instalou-se mais tarde.

O problema é que o recenseamento que listou os agregados familiares com direito a realojamento nunca foi revisto, o que quer dizer que a uma família que tinha três pessoas na altura, e que hoje tem cinco, é entregue uma casa como se nada tivesse mudado. Também isso quer dizer que a todas as pessoas que chegaram mais tarde ao bairro, não lhes sobra uma alternativa digna – é disso que se queixam moradoras, moradores e ativistas, que há anos vêm travando uma luta com a Câmara Municipal da Amadora e com o Ministério do Ambiente, para que se reveja o Programa Especial de Realojamento (PER), de modo a dar alternativas dignas a quem não está incluído no PER. O Governo tem libertado informação sobre o assunto, mas ainda não houve uma apresentação oficial de um novo programa.

A própria ONU, por via da relatora especial Leilani Farha, apontou “violações ao direito a uma habitação condigna”, mencionando o bairro 6 de Maio como um desses casos. O próprio Provedor da Justiça recomendou por duas vezes, em 2015 e em 2016, a suspensão das demolições e a revisão do PER. O parlamento aprovou por unanimidade uma moção, recomendando ao governo em Março de 2017 que “Assegure o fim das demolições e despejos sem alternativa;”. Também o “Relatório Anual sobre o Estado dos Direitos Humanos no Mundo em 2017 e 2018”, da Amnistia Internacional, nas duas páginas dedicadas a Portugal, informa: “As condições habitacionais de pessoas das comunidades ciganas e de ascendência africana continuaram inadequadas”.

Não parece ser essa a opinião da Câmara Municipal da Amadora, que continua a despejar pessoas e a demolir casas, numa verdadeira operação de limpeza. Na grande reportagem de hoje, falamos sobre o processo de demolições em curso no Bairro 6 de Maio e das histórias de resistência de quem exige habitação e tratamento dignos. Ouve aqui.

Tentámos falar com a Câmara Municipal da Amadora mas da edilidade não houve nenhuma resposta às nossas perguntas, enviadas por email a 16 de Abril. Podes ler aqui o email enviado.

Música da reportagem: Petit Pays – Cesária Évora; Alto Cutelo – Ildo Lobo; Sonho Di Nha Sperança – Humbertona

Nota: No dia 23 de Abril, foi ascrescentado ao texto “Tentámos falar com a Câmara Municipal da Amadora mas da edilidade não houve nenhuma resposta às nossas perguntas, enviadas por email a 16 de Abril. Podes ler aqui o email enviado.“.

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