Opinião

“O rapaz da rua da Fábrica”, por Margarida Tengarrinha

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Naquela rua pobre de Fafe destacava-se uma antiga e ampla casa do Minho, com um primeiro andar e um grande quintal, onde viviam duas irmãs casadas, uma sem filhos e outra com cinco rapazes e uma rapariga. Carlos, por ser o último dos seis, tinha beneficiado de cuidados redobrados mas, entre os irmãos, a sua situação de mais novo nem sempre era fácil, com tantos mais velhos integrados em ocupações e amizades das suas idades. Só o antepenúltimo, Berto, se tinha arvorado em seu protector, enquanto Nelo, que o antecedera, fazia-lhe sentir uma hostilidade ciumenta de quem se sente destronado. 

Se não lhe faltava o carinho dos pais e tios naquela grande família laboriosa, aquele rapazito determinado e de forte personalidade muito cedo procurou na rua amigos da sua idade. E assim, o quotidiano da vida de Carlos, desde muito novito, caracterizou-se pelo seu entusiasmo de brincar com uma quantidade de garotos da sua rua, ao fundo da qual estava uma grande fábrica têxtil, a chamada Fábrica do Ferro. Eram, na maioria, filhos de operários que trabalhavam nessa grande fábrica têxtil. Foi nesta rua da Fábrica que adquiriu amizades que se prolongaram por toda a sua vida e determinaram o seu futuro.

Muitas vezes me contou Carlos as aventuras do seu grupo, por vezes audaciosas, quando se tratava de ir colher alguma fruta a propriedades vizinhas, muitas delas com cães de respeito, que a Carlos competia amansar, porque gostava muito de cães e eles correspondiam-lhe. Falou dumas maravilhosas ameixas, ainda tão verdes que desarranjaram os intestinos da malta miúda, mas não os desencorajaram de continuar essas incursões que, quando não tinham grande êxito, os levava a terminar a merenda no quintal de Carlos, que também tinha boa fruta.

Na rua da Fábrica havia muita gente interessante a viver em pequenas casas, que não abrigavam só operários têxteis, mas também pessoas de outras profissões, como o ferreiro e o sapateiro, admirados pela malta miúda como verdadeiros heróis e grandes amigos de Carlos. A melhor das fisgas foi-lhe feita pelo sapateiro. Tornou-se tão hábil no uso dessa arma que um dia conseguiu acertar num passarinho. Recordando essa experiência, disse-me que, ao ver os olhos do passarinho a morrer, jurou nunca mais usar a fisga contra seres vivos, mas só para afinar a pontaria. 

Por vezes, a rapaziada da rua arriscava uma aventurosa excursão até ao rio, que ficava demasiado longe para as suas pernas curtas. Armados de improvisadas canas de pesca, capturavam alguns peixinhos, que logo ali tratavam de assar numa fogueira, comendo-os a custo, pois ficavam negros como carvão. Ao fim do dia, juntavam-se na oficina do amigo sapateiro, que lhes ouvia os relatos das animadas brincadeiras, mas também lhes ia falando de acontecimentos que decorriam ali perto, em Espanha, do outro lado da fronteira. Estávamos nos anos 1936 e seguintes. 

Aos 8 anos, a ideia de uma guerra é algo de aventuroso, quase como nos excitantes filmes de índios e cowboys. Mas o amigo sapateiro desvendava-lhes a realidade, bem diferente e cruel, da luta daqueles que vinham sofrendo a fome, a exploração e a crueldade dos grandes senhores donos da terra e das fábricas e contra eles lutavam, depois de terem derrotado em eleições o regime monárquico e opressor. Corajosamente, formaram o seu próprio exército, conjuntamente com as tropas que lhes eram fiéis, contra as tropas chamadas por esses exploradores para defenderem os seus privilégios: os fascistas do general Franco e de outros que tais, ajudados pelas armas e aviões dos alemães e italianos. Foi da boca do amigo sapateiro que a rapaziada ouviu pela primeira vez os nomes de Hitler e Mussolini.

Carlos chegava a casa cheio de histórias para contar e ansioso por ouvintes mas, a mãe, sempre atarefada, e os irmãos, no reboliço das suas próprias aventuras, não eram ouvintes atentos. Quando começou a falar da guerra de Espanha, a sua descoberta recente, só o pai, atento, se interessou e passou a esclarecê-lo melhor. E, desde aí, teve início uma profunda ligação entre pai e filho, que se prolongou por toda a vida. Mais tarde, quando Carlos foi preso pela PIDE e sob as torturas se negou a trair os seus camaradas, a polícia política prendeu o prestigiado professor Manuel José da Costa, para obrigar o filho a falar. Nem um nem outro cederam à PIDE.

Nesses anos da guerra de Espanha, muitos géneros alimentícios, como a farinha de milho, tão usada na região, eram exportados para as tropas de Franco, criando enormes dificuldades de abastecimento local. As mulheres dos operários reagiram com vigor. Acompanhadas pelos filhos, fizeram manifestações, levantando as bandeiras negras da fome e exigindo os mantimentos em falta. Carlos, é claro, seguia ao lado dos seus amigos.

Quando na Fábrica a exploração apertava, com o agravamento das condições de trabalho e os salários de miséria, e um patrão que pretendia obrigá-los a trabalhar com maior número de teares, as operárias e os operários lutavam. Desesperados, recorriam à greve, o que resultava por vezes em pequenas vitórias, mas sempre em vários dias sem salário – dias de fome. 

Na adolescência, Carlos desenvolveu várias actividades, entre elas a criação de uma biblioteca integrada numa colectividade popular, que teve um enorme êxito. Aos 15 anos, foi contactado por um operário, membro do Partido Comunista Português, iniciando assim a sua vida de militante activo.  

Naquela terra de grandes tradições de lutas operárias, não só a guerra de Espanha foi observada com uma atenção solidária, como a Segunda Guerra Mundial foi seguida com um particular entusiasmo, particularmente pelas vitórias estrondosas do exército soviético.

Quando, em 8 de Maio de 1945, se festejou o fim da Segunda Guerra Mundial, em Fafe realizou-se uma enorme manifestação. Foi aí que, Carlos, com 17 anos, falou em público pela primeira vez, realçando que tão grande vitória contra o nazismo e o fascismo, que pretendiam dominar o mundo, foi a vitória da União Soviética, a vitória do socialismo contra o fascismo, da liberdade contra a opressão fascista que, sob Salazar, ainda dominava em Portugal. Que, com essa grande vitória, a luta antifascista ganhava novas forças para derrubar o fascismo!

A força e convicção desse pequeno discurso foram o lançamento em maiores lutas daquele rapaz da rua da Fábrica.

Margarida Tengarrinha e Carlos Costa foram companheiros de vida e de luta. Lutaram contra o fascismo, viveram juntos na clandestinidade durante a ditadura, e são dois históricos militantes e dirigentes do Partido Comunista Português. Carlos Costa faleceu a 6 de setembro deste ano e parte da sua história nunca foi contada. Agora, é Margarida Tengarrinha quem a conta, com base em relatos que foi ouvindo ao longo de meio século de vida partilhada. 

Este é o primeiro de uma série de textos que serão publicados por Margarida Tengarrinha sobre o seu companheiro. “Carlos Costa – Memórias Partilhadas” será publicado dispersamente e sem datas definidas.

Margarida Tengarrinha utiliza o anterior acordo ortográfico.

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