“Georgete, ou o nome que servir a Revolução”, por Rafaela Cortez

Este texto foi lançado, em primeira mão, na nossa newsletter. Se quiseres receber estas crónicas, recomendações de reportagens, podcasts e filmes no teu email, subscreve aqui.

Não se pode dizer que os problemas de saúde de Georgete tenham começado na prisão. Na verdade, o estômago já a incomodava há algum tempo. Mas a vida no reduto norte do Forte de Caxias, calabouço de presos políticos por excelência, também não facilitava. Aos castigos e maus-tratos somava-se o isolamento e a privação de exercício físico, a humidade constante, a falta de luz e ventilação, a alimentação deficitária, que, conta, num testemunho registado em “Mulheres portuguesas na resistência”, consistia em pão negro e um guisado “pessimamente confecionado”.

Através de batidas estratégicas na parede, Georgete conseguiu comunicar com um médico que se encontrava detido no primeiro andar da prisão. O prognóstico, comunicou-lhe de volta, não era muito otimista. Era importante que fosse vista por um médico o quanto antes. Os camaradas de Georgete romperam em protestos, exigindo que fosse levada para um hospital. A 13 de agosto de 1950,  Georgete deu entrada no Hospital de Santo António dos Capuchos pela primeira vez. Voltou a Caxias no próprio dia.

Deteriorando-se de novo a sua condição, novos protestos convenceram os guardas a permitir que fosse lá internada a 4 de outubro. Não tardou muito até que se sentisse melhor e pusesse o plano em prática. Não podia haver um passo em falso. Aliás, se a coisa era para resultar tudo teria de ser combinado e estudado ao mais pequeno pormenor: a família traria roupa extra numa das visitas, que Georgete esconderia de olhos inquisitivos, e quando fosse levada ao laboratório do hospital, onde fazia análises ao sangue, aproveitaria a ajuda de um dos médicos para, sorrateiramente, se escapar pela porta que dava para a rua.

“No dia combinado, ajudada por alguém do hospital, dirigi-me ao referido laboratório. Por baixo do robe, levava a minha roupa. Fui muito ajudada. Mudei de penteado e saí para a rua onde um camarada me esperava num carro.”

Georgete de Oliveira Ferreira, ribatejana natural de Alhandra, Vila Franca de Xira, foi a primeira mulher a fugir de uma prisão política portuguesa. Tinha sido presa um ano antes, em 1949, por se dedicar a “atividades subversivas”, como escrevia a Polícia Internacional e de Defesa do Estado, ou PIDE.

Aderira ao Partido Comunista Português em 1943, aos 18 ou 19 anos, e desde então que a vida se fizera de luta. Organizara uma greve junto das costureiras de Vila Franca, que lhe valera a regularização sindical das colegas, assim como o despedimento da fábrica de têxteis onde trabalhava; organizara e participara nas greves contra a fome de 8 e 9 de maio de 1944; e envolvera-se em campanhas de solidariedade para com presos políticos. Em 1945, deixara de ser Georgete para ser Helena, Paiva, e qualquer outro nome que servisse à ocasião. Ajudava os camaradas nos trabalhos de secretaria, de organização e de defesa da casa: “Fazia aquilo que se chamava trabalho técnico.”

Em meados de 1950, tomaria um lugar no Comité Central do PCP, que viria a ocupar até 1988. Representou Portugal no Congresso Mundial das Mulheres de 1963, e, após a Revolução, foi deputada à Assembleia Constituinte (1975/1976) e deputada à Assembleia da República (1976 a 1988). Morreu a 4 de Fevereiro de 2017, aos 91 anos.

Georgete é apenas uma das mulheres que mergulharam na clandestinidade, que abandonaram as terras, as famílias, e até a própria identidade, para lutar contra a ditadura de Salazar e Caetano. Atrás das janelas, das paredes, das grades da prisão —  e também, ainda que em menor número, nas ruas — as mulheres protegeram as casas clandestinas onde viviam apoiantes do partido, fizeram a gestão doméstica, asseguraram a impressão de jornais e panfletos da resistência, falsificaram bilhetes de identidade, cartas de condução, passaportes. Durante décadas, o trabalho destas mulheres suportou o aparelho clandestino do PCP, a mobilização dos trabalhadores e a resistência antifascista. E no entanto, raramente ouvimos falar sobre elas.

Ainda me lembro da primeira vez que ouvi uma das suas histórias: nem a propósito, no evento de comemoração do segundo aniversário do Fumaça, em 2018, onde Margarida Tengarrinha falou a uma sala cheia sobre os seus anos na clandestinidade. Já lá vão quase quatro anos, mas o dia-a-dia, os sacrifícios, e a persistência, destas mulheres continuam agarrados à minha memória. Hoje, três dias depois do dia mais bonito do ano, é o trabalho delas que relembro. A história do 25 de Abril não se fez só de homens, militares e capitães. Foi também aos ombros delas que se fez a Revolução.

No último ano, passei os meus dias a ler e ouvir testemunhos de pessoas que viveram na clandestinidade. Debrucei-me em livros de investigadores e jornalistas. Perdi-me nos arquivos da PIDE/DGS, preservados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, e no Arquivo Histórico do Gabinete de Estudos Sociais do PCP. Tudo para tentar responder a estas perguntas: Quem são estas mulheres? Quais são as suas histórias? E qual foi, afinal, o seu papel na Revolução?

Agora, depois de meses de trabalho, adrenalina, e ansiedade, posso finalmente partilhar as histórias que tanto me ocuparam. A reportagem “Às escondidas, elas também fizeram a revolução”, publicada esta semana pela revista digital de jornalismo narrativo Divergente, é o resultado dessa investigação, e já pode ser lida e vista aqui.

Subscreve a newsletter

Escrutinamos sistemas de opressão e desigualdades e temos muito que partilhar contigo.