Jornalismo

Discurso Fumaça nos Prémios Gazeta 2018

Camaradas, 

Quero dedicar este prémio a todas as pessoas que nos receberam na Palestina: em Ramallah, Hebron, Belém e Jerusalém. Que nos deram tudo, apesar de não terem quase nada. Um dia, perguntei ao Jafar, um ativista, pai de família, que durante a Segunda Intifada andou fugido das tropas israelitas pelas montanhas, porque é que ele e todas as pessoas palestinianas insistiam em oferecer-nos tanta coisa: comida, sítio para ficar, chá e café, tempo da sua vida e as suas histórias pessoais. Ele disse-me: “Eu não sei se amanhã estarei vivo, mais vale oferecer tudo o que tenho hoje”. Num momento em que assistimos aos grandes poderes mundiais fomentar a construção de muros, a limpeza étnica e a ocupação, banalizar as mortes às centenas e apoiar o processo de apartheid em implementação pelo governo israelita, ouvir as vozes de quem lhes resiste é a demonstração de que a luta pela liberdade não está perdida. Numa entrevista feita o ano passado, aqui em Lisboa, a três artistas palestinianas, perguntavamos-lhes se “Al Nakba Mustamira” (se a Nakba, a limpeza étnica iniciada em 1948, continua). Uma delas disse-nos: “Sim, a Nakba continua, mas a resistência também”. 

Quero dedicá-lo também à equipa Fumaça: desde os que, em 2016, no início do então É Apenas Fumaça, receberam a loucura de braços abertos e aceitaram “saltar o muro”, como diria José Gomes Ferreira – o escritor; aos que se foram juntando a nós pelo caminho, com a paixão das coisas únicas da vida; aos que se despediram do conforto dos seus empregos para se juntarem àquilo a que um diretor de um jornal português de referência chamou de “buraco”; e, principalmente, à Maria Almeida, talvez a jornalista com maior sensibilidade que conheço. Foi ela que viajou comigo para a Palestina no que toda a gente sabia não serem, exceto nós, umas férias. Foi dessas “férias” que nasceu a série “Palestina, histórias de um país ocupado”, que ela reportou, escreveu, investigou e narrou comigo. É triste que ela não esteja aqui para receber este prémio como seu. A Maria exemplifica as contradições do corporativismo da profissão: produziu um trabalho jornalístico premiado com um Gazeta não podendo ser considerada jornalista. Para nós, é bastante simples: é jornalista quem faz jornalismo. 

Quando iniciámos esta caminhada nenhum de nós tinha sido ou era jornalista. Aliás, a primeira entrevista que publicámos – ao historiador e cofundador do LIVRE, Rui Tavares – foi a primeira que alguma vez fiz na vida. Isto foi em junho de 2016, há pouco mais de três anos. Em 2017, tomámos a decisão mais bonita e suicida das nossas vidas profissionais: iríamos despedir-nos dos nossos trabalhos e começar um projeto de jornalismo profissional, criando uma redação a tempo inteiro. 

Fomos considerados loucos (o que, devo dizer, por vezes é um elogio); um bando de putos que tem a mania que são jornalistas. Conversámos com camaradas, no ativo ou que tinham já abandonado a profissão, e o que ouvimos, dos mais conservadores aos mais progressistas, foi quase sempre o mesmo: “Porque não se juntam a um jornal e fazem isso lá?”. Mas não. O que queremos com o Fumaça não é, nem nunca foi, trazer algo de novo aos velhos jornais. Nós queríamos e queremos revolucionar o jornalismo. É uma palavra forte, esta, “revolução”. Mas é exatamente isso que pretendemos. Queremos reestruturar e repensar o jornalismo atual com um projeto independente, progressista e dissidente, com investigação e tempo para pensar; que faça menos, com mais qualidade; que não se foque em ser o primeiro, mas, sim, em aprofundar; que oiça as pessoas e lhes mostre que elas podem fazer parte do processo, que a sua opinião realmente importa; que se foque em Direitos Humanos; que seja radicalmente transparente – em relação ao dinheiro que recebe e em como o gasta, em relação ao processo de produção jornalística e em relação à sua parcialidade; cujo objetivo não seja o lucro.

O Fumaça nasceu com um outro sonho, uma visão: a de criar o primeiro projeto de jornalismo português totalmente financiado pelas pessoas. Parece uma ideia louca. E talvez seja. Mas a verdade é que se há uma coisa que a caminhada do Fumaça nos tem ensinado, é que, ao contrário do que se vem dizendo – “que as pessoas não querem pagar por jornalismo” -, a comunidade que nos apoia mostra algo diferente: que talvez as pessoas não queiram pagar por jornalismo superficial; por quem escolhe apenas querer ser o primeiro; por quem ouve sempre os mesmos; por quem conta as mesmas histórias de sempre; por quem não se esforça por ser mais que uma notificação; por quem escolhe fazer muito e, por isso, faz pouco. Por outro lado, as pessoas querem pagar por jornalismo que não lhes diga apenas o que aconteceu, mas antes explique porque aconteceu. Que vá mais longe, com seriedade e transparência. Que conte histórias que não foram contadas e apresente vozes que não são ouvidas. Que contextualize. 

Desde que abrimos a nossa plataforma a donativos, eles têm crescido de uma forma que nem nós próprios, “os loucos”, imaginaríamos. Neste momento, mais de 400 pessoas contribuem ou contribuíram mensalmente para que o Fumaça exista. Se, no início deste ano, recebíamos pouco mais de 400€ por mês, hoje, são cerca de 2000€, o que quer dizer que, em média, 10% das pessoas que ouve uma das nossas peças paga para ouvi-la. E vocês perguntam: “Porquê? O que é que ganham em troca?”. A resposta é: nada! Nada. O nosso jornalismo é aberto a toda a gente, sem premiums, nem paywalls. As pessoas da nossa comunidade dão-nos dinheiro simplesmente porque querem que nós continuemos a existir. Porque acham que o jornalismo que estamos a fazer é importante, e porque acham que é fundamental, em democracia, haver quem tenha tempo para investigar e para pensar a realidade que reporta.

Mas não chega. Os 2000€ que hoje recebemos por mês estão muito longe, ainda, do dinheiro que precisamos para sobreviver com as condições que hoje temos. Uma redação pequena, como a do Fumaça, com seis pessoas – quatro a tempo inteiro, duas a tempo parcial – com contratos de trabalho, sem falsos recibos verdes e sem falsos estágios (vou repetir: com contratos de trabalho, sem falsos recibos verdes e sem falsos estágios), custa mais de 10 mil euros por mês. Isto significa que a redação do Fumaça só existe e só foi possível graças a bolsas de jornalismo como as que vencemos da Open Society Foundations, em 2018 e 2019, ou da Fundação Calouste Gulbenkian, em 2018. Só que esse dinheiro acaba: se tudo continuar assim, o Fumaça terminará, como hoje existe, em maio de 2020. Dentro de seis meses, os jornalistas do Fumaça que hoje estão sentados ao vosso lado estarão desempregados. É bastante irónico que aconteça no ano seguinte a vencermos um Gazeta, mas é a verdade.

É triste que numa democracia do século XXI, na Europa, não haja espaço para este tipo de jornalismo. É preciso haver mais Fumaças, é preciso haver mais Divergentes, é preciso haver mais projetos como O Corvo, que deixámos morrer este ano; é preciso haver espaço para que mais Joanas Gorjão Henriques possam demonstrar como ainda vivemos num país estruturalmente racista; que mais Miguéis Carvalho possam investigar como as narrativas históricas oficiais, como a do PREC, não colam com a realidade; que mais Sofias Lorena possam ir para o Médio Oriente explicar-nos o mundo; que outras Alexandras Lucas Coelho possam trazer do Brasil as histórias que mais ninguém vai trazer; que mais Josés António Cerejo revelem os podres da política; que outros Ricardos J. Rodrigues possam ir além de Trás-os-Montes, a qualquer canto deste país, escutar as vozes que mais ninguém foi ouvir. Precisamos de gente como o Fábio Monteiro, a Vânia Maia ou a Mariana Correia Pinto. Precisamos que as dezenas de jornalistas anónimos e anónimas dessas redações, cujas direções nada mais deixam fazer que editar press releases ou republicar notícias da Lusa, possam ter espaço para fazer outro tipo de jornalismo.

E é exatamente esse tipo de jornalismo que os Prémios Gazeta pretendem distinguir. Mas, para fazê-lo, é preciso tempo. E, por isso, eu pergunto (e isto é retórico, não é necessário levantar braços, até porque seria um pouco constrangedor): quantos diretores e editores em Portugal dão tempo suficiente para que jornalistas possam fazer as peças mais tarde distinguidas nos Prémios Gazeta? É que quando os resultados saem, quase todos os meios fazem uma notícia orgulhosa dizendo: “Jornalistas do Expresso ganham Prémios Gazeta 2018”, “Nova decisão dá prémio Gazeta Revelação a reportagem do Observador”, “Jornalista do PÚBLICO vence Prémio Gazeta Revelação” (isto são exemplos reais). Mas quantos distinguidos com os Prémios Gazeta nestas e nas anteriores edições tiveram realmente o tempo? Quantos deles não produziram estes trabalhos, de que todos nos orgulhamos, nas horas vagas, nas folgas, ou nas noites de sexta-feira em que ficaram na redação porque não tinham dinheiro para ir jantar com os amigos? Reparem na hipocrisia desta noite: vimos aqui um vez por ano celebrar O jornalismo, esquecendo que no resto dos dias direções editoriais e administrações não garantem condições para que Ele se faça. 

E tudo isto está obviamente ligado ao financiamento do jornalismo. Porque um ou uma jornalista estar meses a trabalhar numa peça, como aconteceu com “Palestina, histórias de um país ocupado”, em que trabalhei seis meses, tem como consequência publicar menos coisas. E todos nós sabemos, obviamente, que publicar menos traz menos clicks – nós também o sentimos. E é exatamente por isso que um modelo de sustentabilidade baseado em clicks e em publicidade será sempre um modelo viciado.

Quão irónico é o maior prémio de jornalismo em Portugal ser patrocinado por duas empresas multinacionais – um banco e uma empresa petrolífera – que atuam em setores responsáveis pela maior crise financeira das últimas décadas e pela crise climática que definirá o nosso futuro? Quão na mão dos mais poderosos está o jornalismo? 

É necessário encontrar outros modelos. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que hoje aqui se senta na sala, classificou, durante a cerimónia de entrega de Prémios Gazeta do ano passado, a situação da comunicação social em Portugal como – e estou a citar – “um problema de emergência democrática”. A semana passada, disse, num evento sobre literacia mediática, organizado pelo jornal Público, esperar que existam medidas no Orçamento do Estado de 2020 que apoiem os média em Portugal. 

Estamos de acordo. Mas não chega que existam medidas de apoio. É necessário que seja feita uma discussão aprofundada e séria sobre a sustentabilidade do jornalismo. Que envolva os grandes meios tradicionais, os projetos de jornalismo independente, a imprensa local e regional, os jornalistas e as pessoas. E não pode servir essa discussão ou essas medidas para que quem manda na comunicação social portuguesa – e falamos de uma ou duas dezenas de pessoas que mandam na meia dúzia de grandes grupos de comunicação que existem neste país – esteja mais seguro e confortável à custa de quem lhe enche as páginas de clicks, com mais alguns bónus, assinaturas pagas ou benefícios fiscais. Se a discussão sobre a sustentabilidade do jornalismo for séria, ela terá em conta uma profunda remodelação do sistema, oferecendo condições dignas a quem trabalha, sem falsos recibos verdes, sem salários de merda que obrigam a escolher entre comer e dormir e que recusam o direito a constituir família, que deixam centenas de pessoas agarradas pelo pescoço. Sem a obrigação de escrever oito peças por dia. E que, acima de tudo, volte a dar tempo a quem faz jornalismo: tempo para pensar, investigar e aprofundar. É essa a revolução de que precisamos. E a discussão sobre como fazê-la tem de começar já. 

Fotografia: Giuliana Miranda

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