Crónica

“Bichas e Golias”, por Fado Bicha

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Lisboa, cheia de cor
Terra de tremor, a cada junho
Cascatas de purpurinas
Perucas são crinas
E, ao alto, o punho

Começamos assim, com a primeira estrofe da nossa canção Marcha do Orgulho, escrita para a música Marcha de Alfama, de Raul Ferrão, composta há várias décadas, numa Lisboa onde a homossexualidade e as identidades trans eram ainda crime, doença mental, indizíveis. Se hoje podemos cantar a Marcha do Orgulho, devemo-lo às nossas irmãs e aos nossos irmãos que, ao longo do século XX, lutaram pela liberdade das pessoas queer, contra sociedades e Estados repressivos, sacrificando o seu bem-estar, a sua segurança, por vezes as suas vidas. É a elas e à sua memória que dedicamos cada junho e este artigo também.

Olá, nós somos o Fado Bicha. Somos artistas e criamos arte de intervenção.

Pediram-nos para escrever sobre o exercício da arte e da profissão de artista durante 2020 e 2021, condicionado pela pandemia. E para partilharmos essas reflexões em junho, mês do orgulho lgbtqia+ (usamos quantas letras quisermos e forem precisas) desde os motins de Stonewall, em Nova Iorque, e da primeira marcha política pelos direitos sociais das pessoas queer nos EUA, em junho de 1970. Que não constitua surpresa que cinquenta e um anos depois, estejamos nós, duas bichas portuguesas, brancas, de classe média-baixa, criadas nos subúrbios de Lisboa e bem mais novas do que essa efeméride, a reclamar essa pertença histórica num exercício artístico de rompimento com um cânone cristalizado: a nossa história comunitária é uma manta de retalhos feita de silêncios e violência e, portanto, agarramo-nos ao que podemos. 

No passado dia 29 de maio, demos o primeiro concerto desde setembro de 2020. Oito meses em que também não pudemos regressar ao estúdio do nosso produtor para continuar a gravar o nosso álbum de estreia, gravação que começámos no final de 2019 e tem estado este tempo todo suspensa, deixando-nos com uma sensação amarga e contínua de interregno forçado. Os concertos são a principal fonte de rendimento da maior parte das pessoas que vivem da música, mas isso vocês já sabem. Exigimos agora ter tudo disponível, a toda a hora, incluindo a música, em plataformas que disponibilizam os nossos trabalhos, com a promessa de lhes dar visibilidade (ou a ameaça latente de eles se tornarem irrelevantes se não estiveram lá) e a prescrição de enriquecer algumas pessoas – como o CEO do Spotify, que aumentou em milhões de dólares a sua riqueza durante 2020, chamou os músicos de preguiçosos e agora quer comprar um clube de futebol inglês. O único momento em que a generalidade das pessoas aceita pagar pelo trabalho de quem faz música é nos concertos ao vivo. A coisa dos espetáculos virtuais nasceu forte e morreu rápido. E nem dá para censurar. Como priorizar a música, a cultura, num contexto de empobrecimento generalizado, de precariedade? Como valorizar a música e a cultura, num país onde a comunidade profissional se organiza há anos para lutar por ter 1% do Orçamento de Estado consignado à cultura? Sem sucesso. Onde a noção de cultura se esgota em ideias maniqueístas de “popular” vs. “erudito”, em referências eternas a caravelas, azulejos e saudade? Onde a política cultural é, frequentemente, um pró-forma regado a drinks e nepotismo. É difícil não sucumbir. Sem concertos para carregar baterias, fazer experimentações, falhar e progredir, chegar a mais pessoas e, sim, ganhar dinheiro para pagar o quarto sem ter de pedir ajuda aos pais, torna-se ainda mais difícil. 

Pois bem, em junho de 2020, três meses depois do início do primeiro confinamento, esperávamos ainda pelo primeiro apoio do Estado. Tínhamos feito um concerto nos primeiros dias de março, na Islândia, pelo qual não fôramos pagos até então, apesar dos vários e-mails de insistência – já nem respondiam. Tivemos de perder o decoro e deixar um comentário público no perfil de Instagram do bar para sermos, finalmente, pagos: 180€. Tínhamos feito um concerto online, em maio, também ainda por saldar, mas esse pagamento estava em trâmite, dependente de burocracias institucionais.

Não recebêramos, até então, nenhum apoio estatal. O programa de apoio da Direção-Geral das Artes não se aplicava a nós. O pedido na Segurança Social (SS) continuava em análise desde março (por um erro da própria SS, supostamente, resolvido em abril). Já tínhamos perdido a conta ao número de vezes que ligáramos, umas vezes exasperadamente, outras mais resignades, e ouvíamos os clássicos “tem de aguardar” ou “o sistema não me permite saber”. O pedido à Câmara Municipal de Lisboa não fora, por um erro que nunca percebemos, recebido pelo gabinete que gere o fundo de apoio aos artistas, apesar de o termos enviado, com toda a documentação necessária, três dias depois da data de início das candidaturas. Mesmo tendo provado que enviáramos em tempo útil, ficámos descartades dessa ajuda e passaram-nos para um auxílio especial a artistas de fado, informando-nos que corríamos o risco de não sermos aprovades pelas instâncias superiores por não tocarmos em casas de fado e podermos não ser considerades “artistas de fado”. Três meses de quarentena e insegurança e zero de Estado social.

Mais tarde, recebemos esses apoios relativos aos primeiros meses. Em agosto e setembro, demos três concertos e não só perdemos o direito de continuar a receber algum apoio como tivemos de pagar a contribuição para a Segurança Social pelo valor ganho. Garanto-vos, é bastante. Não somos contra impostos ou pagamentos tributários, pelo contrário, mas a desproporcionalidade é gritante. O Estado que demora meses a responder ou a efetivar o apoio é o mesmo que nos multa se deixamos passar um dia de pagamento devido. Não temos contabilidade organizada, não temos manager, nem forma de pagar isso. Sobrevivemos nesta selva pela ajuda mútua, por amor à arte e pelo carinho das pessoas que gostam do que fazemos. 

As lógicas de mercado, de sobrevivência do mais forte, aplicadas à arte, fragilizam o tecido cultural de uma sociedade e minam a sua diferenciação, num processo seletivo que é centrípeto, conservador. As cicatrizes deste fenómeno ficaram ainda mais expostas durante a pandemia de covid-19. Fazer equivaler determinada arte ao dividendo económico que ela gera (frequentemente, para um número tanto menor de pessoas) transforma o mercado no regulador de que expressões artísticas têm ou não valor e, consequentemente, possibilidade de aceder a uma noção de continuidade ou subsistência. Estas dinâmicas põem a nu a batalha de Golias que toda a arte marginal enfrenta. Colocam o criador dissidente num lugar de vulnerabilidade e precariedade, em contraste com os seus pares convergentes.

A arte orientada para o sucesso é o último reduto do esvaziamento crítico e reflexivo, é uma espécie de sala de espelhos e de ecos de normas, consonâncias e do que já conhecemos. É a morte do erro como mecanismo de experimentação, e sabemos como a produção de valores não tem tempo a perder. O altar dos monumentos hegemónicos inquestionáveis, senhores das suas próprias narrativas suaves ou alienadas, muram-se de um mercado sedento e neutralizador da diversidade. O centro como princípio e fim, detentor de todas as possibilidades, bastião da verdade. O verbo e a verdade – científica, política, histórica, financeira. A higienização de tudo o que lhes é exterior. A grande mó que oblitera línguas, sotaques, proveniências, narrativas, perfilhamentos históricos, étnicos, expressões desconfortáveis, o incompreensível, o tenso, o grotesco. A menos que sejam servidos de uma forma simples, palatável, pronta a consumir. Que não engrene. Que não gangrene.

O Estado, como potencial garante dessas estruturas que se queriam livres, dissonantes, tem sido, também ele, o bom aluno do ditado de normas e estruturas epistemicidas e perpetuação de dinâmicas de poder. Não deveria surpreender-nos, também isto. O Estado é a grande superestrutura normativa e opressora. Não há liberdade sem horizontalidade. O Estado como protetor da criação artística é um logro.

Acreditamos na arte como forma de resistência, como mecanismo de inquietação, divergência, como forma de voltarmos a conectar-nos com a realidade, com a alteridade, com a capacidade de escuta, com a verdade tácita dos nossos órgãos e dos nossos fluidos… No fim de tudo, a arte como forma de nos reorganizarmos, de nos reumanizarmos.

A arte é síncopa. 
            Acontece nos tempos fracos, 
                        no intervalo das lógicas que criámos, 
                                    para ganhar fôlego e prosseguir.

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