“A revolução não vai ser um Tweet”, por Xullaji

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Segundo a timeline linear e monofocal que se convencionou universalizar e chamar História, nasci logo após uma revolução que trouxe Liberdade. Nasci livre. Na escola, dizia-se que aquele dia de Abril tinha trazido a Liberdade aos portugueses. Dizia-se que a partir daí os africanos tinham igualmente ficado livres. Como se um povo pudesse dar liberdade a outro. Como se a liberdade não fosse uma coisa ganha a ferro e fogo para logo a seguir ser novamente posta em causa. Como se, tanto em Portugal como em África, essa Liberdade não tivesse sido uma luta longa e dura que envolveu uma figura, cada vez mais desvanecida da política atual, chamada Povo, soldados ou não. Guerrilheiros.

Mas nas páginas dos livros da escola foi assim: um evento com direito a flores que ficará assim para sempre. Hoje é assim: as coisas são reduzidas a datas e eventos. No relógio do mestre, o tempo é um eterno presente, permanentemente sincronizado com a agenda vigente, contendo apenas os “factos” oficiais. Facto e oficial são duas palavras que mudaram muito no fala-escreve dos últimos cinco anos, mas, na verdade, Orwell já havia previsto que o Ministério da Verdade editaria os factos conforme fosse conveniente para o agora. Neste eterno, agora, somos livres. Temos liberdade de falar e consumir. Inclusive até o nosso “lugar de fala” é objeto de consumo.

A iconografia messianista assim faz. Esvazia as palavras dos lutadores para os transformar em imagens pop. Daí que seja possível encontrar 2Pac Shakur, Bob Marley ou, quem sabe, Che Guevara numa loja da Inditex, estampada numa T-shirt feita por uma mulher ou criança algures do outro lado do muro onde a liberdade ainda não chegou sob custo de perdermos a nossa Liberdade>>>de consumir. O grande espaço de afirmação desta nossa liberdade, o Centro Comercial, está cheio de coisas assim. Lá em baixo há uma secção de frutas e legumes, cheia de tomates plantados por um preto numa estufa de Almeria. Ou de rúcula colhida em Odemira, por outro que não se achando, também o é. Ou pêras do Oeste pelas quais se pagou cêntimos para se vender a um euro ponto muito. Esse agricultor do sul da Europa também é preto. Não destes, como eu, que já conseguiram atravessar o muro de arame, de água salgada ou de areia quente, ou das boas graças do capitalismo que se tornou multicolor após George Floyd e transformou também o sangue, lágrimas e suor das lutas de libertação das pessoas do sul num produto, num emprego, num lugar de representatividade, numa instituição, num artigo on-line.

A escola não fala de um dia logo após o tal, em que a Liberdade deixou de ser um processo permanente de luta para se transformar num negócio. Numa programação incessante e acelerada de mais do mesmo. A escola não fala desse dia, acho que em  Novembro (vários de 74 para cá), em que a liberdade veio encher prateleiras de supermercado e expositores de lojas. Chegou num livro sobre a revolução entregue numa caixa de cartão. Numa refeição glúten free. Num festival cheio de bandas revolucionárias que voaram de toda a parte, em companhia low-cost (excepto headliners) e dormiram num quarto que alguém demasiado parecido com as nossas mães, ou tias, ou irmãs, vai limpar. Ou no café, colhido por mulheres do Quénia, ou chá colhido por mulheres do Sri-Lanka num break dum seminário sobre Libertação transmitido em streaming através de servidores que aquecem o planeta tanto quanto as vacas, os carros e os edifícios. Ou no estudo, academização, mercantilização e restrição do saber sobre figuras e processos das lutas de  libertação, sobre as quais depois se torna dono e se transforma em produto. Até Amilcar Cabral já não escapará. Ou na mercadorização e branqueamento da arte africana, muitas vezes emergida em contextos  de resistência, que passam a animar o Lusotropicalismo de cidades gentrificadas à custa de excluir os seus moradores através da coação do Mercado Livre. 

A liberdade tão celebrada continua a produzir pretos e pretas, ou o devir dos pretos e pretas de que fala Mbembe, pois, nessa liberdade que me ensinaram, nunca existiu sem isso. Sem fabricar não-pessoas e não-lugares. Aqueles e aquelas que do outro lado do muro aguardam. Num campo. E trabalham enquanto aguardam. Num campo. Ou morrem enquanto aguardam. Num campo, numa mina, numa monocultura, numa sweatshop. Um campo. Aguardam por entrar neste maravilhoso mundo Livre. Único possível na História Universal, ou nessa linha chamada progresso. Que assim que supostamente largou África e outros lugares do Sul se apressou a trocar o termo selvagem por subdesenvolvido, para assim continuar a justificar a pilhagem dos corpos, da terra e do mar>>>e do ar.

A Liberdade fabricou brancos e pretos, e atribuiu a cada uma o seu lado do muro. Mas esse muro mexe-se. Estende-se. Cresce em altura, largura, raça e classe. E do lado “livre” dos muros, nascem mais. E mais. Muros físicos e muros no pensar, citando JMB. E dentro desses muros, em plena “Liberdade”, novos messias emergem. E quem não alinhar nesta liberdade terá um campo à sua espera. No outro grande espaço desta Liberdade, trocamos palavras de ordem e slogans por atenção. Atenção cuidadosamente triada, catalogada transacionada por uma das grandes promessas da nossa liberdade e simultaneamente seu maior agoiro. Daí que é preciso repensar The Revolution Will Not be Televised de Gil Scott-Heron:  

A revolução não vai ser um tweet. Ela vai ser na street

A montar barricadas. Fugir dos drones, das granadas e jatos de água, 

lançadas pelos cães de guarda da elite >

== A revolução não vai ser um hit

não vai ter um refrão, sobre o qual os opressores vão dançar, sobre o qual os hipsters vão escrever, Suavizar as letras e deixar só o beat >

A revolução não vai ser uma playlist do YouTube,  iTunes, Spotify

Vai vir na mixtape pela mão de husslas, gatunos, com bué de sub e low-fi

A revolução não vai ter wi-fi >

A revolução não vai ser um podcast no Soundcloud ou outra plataforma onde a democratização é uma fraude. Mas na rua bem loud, com uma crowd a gritar

não sou robot and I’m proud >

A revolução não vai ser um #, um stencil num totebag

A revolução não vai ser o número de visualizações ou de pessoas que nos segue.

Tu não vais poder tirar uma selfie, postar e voltar pra casa à espera da tendência que se segue >

A revolução não vai vir dum hippie que virou yuppie e inventou uma app.

Que derruba governos e impõe produtos através de dados sacados a cada click, a cada tap.

A revolução não vai ter uma location no Google Maps.

A revolução não vai ser encomendada na Amazon

Tu não vais poder fazer um grupo no Whatsapp >

A revolução não vai ser um evento que o mundo comenta.

Não vai ser on-line mas frente a bastões e gás pimenta.

A revolução não vai ser efémera, descartável, não vai ser fake news.

Ela vai ser permanente e lenta.

A revolução não vai ser uma performance num zoom

mas uma greve nos armazéns da Amazon, um boicote dos condutores da Uber

Dos mineiros do RDC que não vão esventrar a terra pelo minério sem a qual o GPS do imperialismo perde o rumo >

A Revolução vão ser uma greve das “senhoras da limpeza” e das camareiras do hotel, tu não vais achar a tua cama feita como de costume

A revolução vai ter gente, vai ter ferro, vai ter lume >

A revolução não vai ser um hijab da Louis Vuitton

A revolução não vai ser o Capitalismo Benetton

Não vai ser ter uma sponsored review, com influencers de pijama e pom-pom

A revolução não vai ter Beauty filters nem croma-key

Tu não vais poder subir o brilho e baixar o som….

== A Revolução… >>>>>>>>

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  1. Xullaji

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