“Quando é que é urgente salvar um jornal?”, por Margarida David Cardoso

Olá.

Em 2017, Marcelo Rebelo de Sousa falava de uma grande interrogação que o ocupava: “Até que ponto o Estado não tem a obrigação de intervir [na sustentabilidade dos média]?” Sugeria ao parlamento, sem particular sentido de urgência, encontrar um “acordo de regime”. Seguiram-se cinco anos.

O setor teve e deixou de ter uma secretaria de estado dedicada. 

Regularizaram-se vínculos precários na agência de notícias, nas televisões e nas rádios públicas, mas nada impediu que novos surgissem. 

Nunca se reviu nem a Lei da Imprensa nem o Estatuto do Mecenato.

As medidas de apoio, pelo adiantamento de publicidade, foram um paliativo pandémico às empresas de média, incapaz de compensar as perdas. Nas redações, não evitaram meses de lay-off e corte de rendimentos.

Num inquérito a mais de 850 jornalistas, quase metade disse ter níveis elevados de esgotamento. 

Despediram-se trabalhadores n’A Bola, no grupo Impala e no Global Media, em levas clínicas. Calejados de despedimentos, rescisões, reduções, desinvestimentos e outros sinónimos, alguns jornalistas situam o início do declínio em três décadas.

Mas o setor ficou de fora do Plano de Recuperação e Resiliência. 

A proposta do Governo dos Açores para pagar parte dos salários nas redações não chegou sequer a ser discutida, antes de o executivo cair.

Um novo contrato coletivo de trabalho para jornalistas trouxe, oito anos depois do início das negociações, os salários à entrada da profissão para 903 euros. Falta a portaria que o aplique a todo o setor.

Só em 2023, por salários baixos e delapidação das redações, as greves interromperam a linha noticiosa da agência Lusa, a emissão da TSF e a publicação do Jornal de Notícias. Ontem, pararam também ainda O Jogo, Diário de Notícias e Dinheiro Vivo.

Depois disto, e passados cinco anos, vem do presidente da República novo apelo ao “entendimento de regime”. Agora “é o momento”.

Mas agora já o Jornal de Notícias, a TSF e O Jogo estão ameaçados de extinção, com cortes de dezenas de contratos de trabalho e outras tantas prestações de serviços. Ao Diário de Notícias, partiram a espinha, como diagnosticam jornalistas da casa. A ausência de transparência da administração da Global Media (e de regulação para a impedir) inclinou a discussão para a desconfiança dos números, pois nem diretores editoriais conhecem os dados reais e desconfiam dos divulgados, sejam de contabilidade, sejam de circulação. Jornalistas apelidam de “sinistro” o novo fundo que os gere. E até o regulador tem dificuldade em saber quem afinal detém a empresa detida por outras empresas.

Pelo caminho, nestes jornais e rádio trabalha-se sem salário há mais de um mês. A bolsa de oxigénio para vários precários, que tinham três meses de pagamentos em atraso, foi um fundo solidário criado por camaradas. Vários preparam a saída da profissão. Como é que até aqui não havia urgência?

Nada disto pode alguma vez parecer uma surpresa. Foi dito e redito. Não faltam diagnósticos à crise deste modelo de financiamento. Não faltam demonstrações de que a publicidade não chega, as assinaturas não chegam, e as publicações só se aguentam enquanto a administração estiver disposta a continuar a perder dinheiro. Quando deixa de acontecer, vêem-se encolhidas e precarizadas uma e outra vez. No entanto, a defesa da necessidade de encontrar formas de cofinanciamento público é consecutivamente rejeitada por direções editoriais dos próprios meios de comunicação. Porque encontram mais motivos para desconfiar do Estado do que de conglomerados opacos, aos quais obrigações de transparência, de gestão democrática, ou de prestação de contas não se colocam da mesma forma, ou até de forma alguma– isto é um autoplágio de há uns meses, do que também defendemos aqui, no mesmo evento em que Marcelo primeiro pediu um acordo, e depois aqui, aqui e aqui

Nada se fez para que surgissem alternativas ou se reconvertessem os atuais modelos. Se agora formos desenhar uma intervenção em cima do joelho, haverá tempo para criar e discutir os mecanismos concretos que protegeriam a independência editorial? Haverá tempo para estruturar uma revolução no setor ou apenas para resolver um problema emergente, até que surja o próximo?

Roubo uma frase à peça de teatro escrita por jornalistas, sobre jornalismo, que tem no Cinema São Jorge, em Lisboa, a sua primeira leitura pública, esta segunda-feira, às 21h: Se dissermos que é preciso discutir o jornalismo, isso já conta como ação?

Até já,

Margarida

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