Opinião

“Nada é oferecido, tudo é conquistado”, por Inês Henrique

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O meu primeiro contacto com o atletismo foi aos 12 anos. Fui participar com a minha irmã numa corrida na nossa freguesia, São Sebastião, para o Torneio das Freguesias de Rio Maior, a convite de um professor de Educação Física. Gostámos e começámos o nosso percurso no atletismo no Clube de Natação de Rio Maior, com o treinador Jorge Miguel.

O meu treinador sempre foi um exemplo para mim. Exigente, dedicado, colaborante, confiável e com uma visão otimista para enfrentar as dificuldades da vida de um atleta. Nunca se centrou apenas na formação desportiva. Também procurava formar homens e mulheres para a vida. Não é fácil que todos os treinadores façam o mesmo quando muitos trabalham por “carolice”.

Em 1991, quando a Susana Feitor conquistou o título de Campeã do Mundo, todos quisemos fazer marcha. Eu experimentei e adquiri o gesto técnico de forma muito natural. Comecei a dedicar-me a sério. Era muito focada e dedicada ao treino – ao passo que na escola tinha dificuldades, aqui sentia que poderia estar no topo. Nas primeiras competições, ainda como infantil, comecei a ter bons resultados e no escalão de iniciada já era a melhor em termos nacionais. 

Treinávamos à volta de um campo de futebol, no pinhal, nas estradas próximas da cidade e, nas tardes de verão, íamos duas vezes por semana para uma pista de cinza na Ribeira de S. João, a oito quilómetros da cidade. No inverno não era possível, porque não tinha luz.

Com a aposta de Rio Maior no desporto e a construção de infraestruturas, um pavilhão gimnodesportivo, uma piscina e um estádio municipal com pista de atletismo, começámos a ter melhores condições de treino. Apesar desse avanço, o clube continuava muito dependente dos apoios do município e tínhamos poucos recursos.Tínhamos um médico e um massagista voluntários, que apenas por amizade nos davam algum apoio. As deslocações eram quase sempre feitas na carrinha do treinador ou com ajuda de familiares. E quando começámos a fazer estágios em altitude, de duas e três semanas, eu e o meu treinador pagávamos a meias.

Esta falta de apoio é a principal razão do desinteresse e abandono de muitos atletas, às vezes depois de anos de trabalho. O desporto não profissional, em Portugal, está organizado de uma forma que um atleta só é verdadeiramente apoiado pelos resultados desportivos que obtém (ou se preveja que vai obter) nos Jogos Olímpicos. Até lá, praticamente nenhum apoio lhe permite viver do desporto. Ao longo do percurso, para conquistar apoios, primeiro é necessário obter resultados. E sem grandes condições esse caminho é bastante solitário. Em locais que já têm infraestruturas, não existe muitas vezes a manutenção ou o material adequado às várias modalidades. Faltam médicos, fisioterapeutas, massagistas, psicólogos, nutricionistas. Vão evoluindo aqueles que conseguem ter o apoio das famílias, dos treinadores, dos clubes com boas estruturas e condições financeiras e, por vezes, de municípios.

Eu queria ser atleta. Esse era o meu foco principal. Estava determinada e tinha ao meu lado um treinador que me incentivava a ir mais longe. A educação que recebi dos meus pais também foi sempre na lógica do “dou-te a cana para tu aprenderes a pescar”. Sempre me transmitiram que somos nós a fazer o nosso percurso: nada é oferecido, tudo é conquistado. 

Fui evoluindo gradualmente e, em 1996, consegui alcançar os mínimos para o Campeonato do Mundo de Juniores e entrar para o percurso de Atleta de Alta Competição. Para um atleta chegar a esse ponto significa ter alguns apoios das federações, que, na maioria das vezes, não recompensam o trabalho, esforço e dedicação. O que eu recebia, nesta altura, dava para comprar sapatilhas e pouco mais. 

Depois veio a dificuldade em conciliar o Alto Rendimento com os estudos. No ensino secundário, tive de anular algumas disciplinas para evoluir como atleta. Não tive outra forma de o fazer. Tinha certos direitos, mas existiam resistências por parte de alguns professores que não valorizavam o esforço de conciliar os estudos com a carreira desportiva.

Felizmente esta situação foi revista e melhorada no ano letivo de 2016/2017 com a implementação do projeto-piloto das Unidades de Apoio ao Alto Rendimento na Escola, onde os alunos atletas estão mais protegidos. Atualmente está implementado em 19 escolas, com 700 atletas de 43 modalidades.

A noção da precariedade económica de um atleta levou-me a apostar mais nos estudos ao mesmo tempo que tentava manter o nível de exigência nos treinos. Entrei em enfermagem na Escola Superior de Saúde de Santarém e, ao fim do primeiro ano, o resultado foi um grande desgaste físico e psicológico: ainda consegui estar no campeonato do Mundo em 2005, mas fiquei no fim da tabela. Não estava a alcançar o que queria e estava muito triste e frustrada. 

Então, no início do segundo ano, apresentámos uma proposta aos responsáveis do curso: eu tentava fazer um ano de estudos em dois anos. Foi aceite com a promessa de me facilitarem a vida e eu cumprir tudo o que fosse combinado.

Este é sempre um dos momentos críticos para a prática desportiva de Alto Rendimento, ou porque coincide com a entrada no ensino superior ou no mercado de trabalho. É preciso tomar decisões e ponderar prioridades: apostar tudo na carreira desportiva ou fazer um investimento no que será a nossa vida quando ela acabar? Eu tentei um pouco dos dois: apostava tudo no curso nos meses de setembro a dezembro e no resto do ano dedicava-me apenas a ser atleta de alto nível. 

A aposta surtiu efeito. Evolui e comecei a alcançar mínimos para os Campeonatos da Europa, Campeonatos do Mundo e Jogos Olímpicos. Com estes resultados, os apoios da federação melhoraram, apesar de nunca saber quando os ia receber. Felizmente, sempre fui organizada, poupada e conseguia ter dinheiro para o essencial. Tive o privilégio de os meus pais terem um apartamento em Rio Maior e poder estar próxima do local de treino para gerir melhor o meu tempo.

Depois de muita luta, de muito esforço, em 2006, com 26 anos consegui realizar marca nos 20km de marcha que me permitiu entrar para o Programa de Apoio à Preparação Olímpica (PREPOL) e, assim, ter uma maior estabilidade, pois tinha direito a uma bolsa correspondente aos meus resultados e apoio financeiro para a minha preparação, além de uma equipa multidisciplinar ao meu dispor. Mas este é o único momento em que somos verdadeiramente apoiados. E, por isso, assistimos, não raras vezes, a atletas que saíram do projecto olímpico e não conseguiram voltar a entrar precisamente porque, nesse período, lhe faltaram os apoios. Aí ou têm um clube que os ajuda ou têm mesmo que procurar outras saídas.

Por minha opção, nunca sai do meu clube de formação nem da minha terra. Rio Maior, hoje, tem um dos melhores complexos desportivos do mundo e é uma referência internacional. A sua aposta no desporto criou condições que me permitiram evoluir, ser uma das melhores atletas do mundo e manter-me na minha terra junto da minha família.

Vinte anos depois de ser uma jovem a dar os primeiros passos no Alto Rendimento, a minha grande oportunidade surgiu em 2017, onde, aproveitando todo o esforço e dedicação que tinha tido, tive a possibilidade de me tornar Recordista e Campeã do Mundo na nova prova de 50km marcha, que infelizmente não foi aceite nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Mas essa é outra história.

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