Opinião

“Entre pessoas em situação de sem-abrigo e especuladores, a PSP escolhe os últimos”, por Ricardo Esteves Ribeiro

Não tinha ainda amanhecido no Largo de Santa Bárbara, em Lisboa, quando Maria Manuel se apercebeu de que este seria mais um dia difícil. Depois de oito meses em situação de sem-abrigo, ela e o marido, Miguel, decidiram largar a tenda em que viviam e mudar-se para uma casa ocupada de que lhes tinham falado. Fazia segunda-feira [8 de junho] oito dias que dormiam debaixo de teto, diz-me Maria, do lado de fora no n.º 9, proibida de voltar a entrar.

Foi antes das seis da manhã que uma equipa de seguranças privados da empresa L.B. Segurança Privada acordou os mais de dez residentes do prédio. Partiram a porta de madeira e subiram as escadas sem identificação, com um taser – uma arma de choques elétricos – e armas de fogo, ordenando que toda a gente saísse: “Estavam armados com uma pistola e uma caçadeira”, conta Maria. “Chegaram ao meu quarto e, em vez de tocarem, abriram a porta. Eu estava de pijama de verão. Um deles, com a arma apontada para mim, disse-me ‘Você tem que se vestir, tem de arrumar as coisas e tem de ir’”.

Telefonei e enviei e-mail para a L.B. Segurança Privada pedindo respostas sobre estas acusações e sobre a ação de segunda-feira; até à data de publicação deste artigo, não obtive resposta. Maria Manuel vestiu-se, desceu as escadas para falar com um dos vizinhos e pedir ajuda, e não mais conseguiu voltar: “Desde as seis da manhã que eu estou aqui na rua. Só saí com a roupa que tenho no corpo, é só o que eu tenho”. 

A madrugada de segunda-feira [8 de junho] foi também a oitava e última que Solange e o seu filho, de 33 anos, passaram naquela casa. Vieram de Itália, no final de 2019, com ideias de passar uma temporada a trabalhar no país. Ainda conseguiram encontrar emprego – ela como ajudante de cozinha, ele num cabeleireiro. Mas, três meses depois: “Começou a fechar tudo, foi todo o mundo mandado embora. Esse dono do restaurante não quis me dar contrato e eu acabei saindo sem receber o que tinha ganho”, diz-me, num sotaque português do Brasil perfeito. A história que se segue é parecida à de tantas outras pessoas: deixaram de conseguir pagar o hostel onde ficavam, os proprietários colocaram-nos fora e, de uma semana para a outra, estavam de malas na mão a lutar para não dormir na rua. As mesmas malas que, durante essa manhã, Solange atirou pela janela com medo de não as poder recuperar e que por ali ficaram, no chão, até perto da meia noite, junto com outras dezenas de mochilas e sacos.

Foi exatamente para ajudar pessoas em situações como a de Solange e do filho que o Seara nasceu. O Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara é resultado da união de esforços de dezenas de ativistas – alguns deles envolvidos na ocupação de um prédio camarário desocupado na Rua Marques da Silva, em 2017, sobre o qual fizemos reportagem –, que decidiram ocupar o n.º 10 do Largo de Santa Bárbara, um prédio desocupado onde, em tempos, funcionou um infantário. Desde 9 de maio que serviam refeições diárias e disponibilizavam casas-de-banho e serviços de lavandaria a quem não tinha teto ou passava por dificuldades.

Poucas semanas depois, algumas das pessoas que visitavam o Seara decidiram ocupar o prédio adjacente ao do centro de dia, que tinha vários apartamentos desocupados. “A maior parte eram pessoas que, até há dois, três meses, tinham trabalho”, diz-me Francisco Carvalho, um dos fundadores, “mas com o encerramento de uma série de restaurantes – precisamente os locais de emprego mais precário – foram estas pessoas que ficaram, obviamente, mais entre a espada e a parede”. Não foi há mais de 15 dias que a primeira pessoa se mudou para esses apartamentos, já limpos por voluntários e deixados em condições para uma estadia temporária. Para as 13 pessoas que lá se abrigavam, era isso mesmo, algo temporário: “A gente não quer viver assim para o resto da vida”, diz-me Solange, com a voz a quebrar, “é só para a gente ter um tempo de se recuperar financeiramente para poder voltar para a Itália, porque nós ficámos completamente descapitalizados. O dinheiro que a gente tinha era para comer”. 

Francisco Carvalho conta-me que esta não foi a primeira vez que os proprietários do prédio tentaram desalojar o grupo. A semana passada, já a advogada que os representa lá tinha passado e, depois de chamar a polícia, foi a própria PSP a concluir nada poder fazer sem uma decisão judicial em favor do despejo. Poucos dias depois, a via foi outra: se a polícia não fazia o serviço, os capangas resolveriam o problema. Afinal, há pouco menos de um mês, lia-se na página de Facebook da empresa L.B. Segurança Privada que “com o levantamento do Estado de Emergência, nunca foi tão importante cuidar de nós e do próximo”. E a verdade é que quase conseguiram completar o serviço. Das 11 pessoas que lá tinham passado a noite, apenas três resistiram à pressão, mantendo-se quase 20 horas dentro do quarto, até desistirem, por fim, sob ovação da centena de ativistas que ainda se mantinha do lado de fora. 

O triste espetáculo que se seguiu foi um de decadência da vida humana: uma a uma, durante mais de meia hora, as três pessoas passaram a esvaziar o prédio de tudo o que ele continha. Impedidos pela PSP de ser ajudados, mas de cabeça levantada como se de uma vitória se tratasse, desceram com dezenas de sacos, malas, caixas, colchões, lençóis e roupas. Do lado de fora, 50 agentes da PSP, entre os quais elementos do corpo de intervenção não identificados – quedavam-se de frente para os manifestantes, cara trancada e apetrechados com caneleiras, joelheiras, capacetes, escudos, bastões e armas variadas, formando um cordão de segurança digno de um cenário de guerra, como nos filmes que por aí se veem.

Mas não foi com este cenário que o dia começou. Quando cheguei ao Largo de Santa Bárbara estavam menos de 50 manifestantes na rua, posicionados no passeio, do lado contrário ao n.º 9. Gritavam pacificamente palavras de ordem contra o despejo e cânticos a favor do centro de apoio: “Seara fica, Seara fica”. Do lado de dentro do prédio, viam-se pela janela os já mencionados três resistentes, que acenavam ao número crescente de ativistas que vinham chegando ao Largo, depois de saberem dos acontecimentos da madrugada através das redes sociais. “Pacífica” é talvez a palavra certa para descrever a atuação de quem protestou durante todo o dia e toda a noite. 

Foi logo após a invasão dos seguranças privados ao prédio que os voluntários do Seara chamaram a polícia. Denunciavam um despejo ilegal sem mandado judicial, feito por uma empresa privada e numa altura em que os despejos estão suspensos (o vereador da Ação Social da Câmara Municipal de Lisboa, Manuel Grilo, do Bloco de Esquerda, veio defender a ilegalidade do procedimento, no próprio dia dos acontecimentos). Solange, que por essa altura estava aterrorizada com a situação, explica: “chegou a polícia, nós ficámos mais tranquilos”. Afinal, para que serve a polícia se não para proteger quem precisa de proteção?

Mas o que rapidamente ficou claro foi que a PSP não se tinha deslocado ao local para salvar quem tinha ilegalmente sido despejado. Pelo contrário, cerca de 20 agentes posicionaram-se cobrindo o prédio onde se encontravam os seguranças e os três resistentes, não deixando ninguém passar a não ser os próprios ‘seguranças’ da L.B., que várias vezes foram vistos a entrar e a sair pela porta principal. E, ao mesmo tempo que cresciam os cânticos contra a especulação imobiliária, contra a habitação como mercadoria e a favor de casas para quem as habita, crescia também o aparato policial. Chegou uma e outra e outra carrinha cheias de agentes de intervenção e o número de polícias duplicou em pouco mais de meia hora. 

Do lado do prédio n.º 9, discursavam agora as pessoas que, umas horas antes, tinham sido escorraçadas de casa, contando as suas experiências de vida e a razão porque não tinham outra alternativa de habitação. Foi por essa altura que alguns dos manifestantes conseguiram entrar no n.º 10, o prédio ocupado pelo Seara, que estava, até então, fechado com uma corrente. Durante mais de um minuto e meio ouviu-se “Seara fica, Seara fica”, até que, sem qualquer aviso, pedido ou exigência, os agentes do corpo de intervenção carregaram sobre os manifestantes com bastonadas, empurrões e gás lacrimogéneo. A polícia dispersou os ativistas do Largo, abrindo um perímetro de segurança sem qualquer razão aparente, enquanto dizia “afastem-se para vossa segurança”. Pois, foram exatamente os membros da polícia as únicas pessoas que colocaram a integridade de quem lá estava em perigo. Várias pessoas ficaram feridas e duas delas tiveram de ser transportadas de ambulância para o hospital.

Eu levei com gás lacrimogéneo na cara, fui empurrado com bastões, imobilizado com um braço atrás das costas e empurrado duas vezes contra a parede, já fora do perímetro de segurança (como se percebe, aliás, neste vídeo da CMTV). No total, gritei 22 vezes “sou jornalista” e identifiquei-me como tal segurando a minha carteira profissional na mão, enquanto empunhava um microfone e fazia repetidamente duas simples perguntas: “Porque é que estão a empurrar as pessoas?” e “Alguém fez alguma ilegalidade?”. Mas isso não interessava e não interessou durante o resto do dia e da noite. Uma única coisa era importante: mostrar quem ali mandava. Foi por isso que, durante as horas que se seguiram, continuaram a chegar carrinhas com a ‘tropa’ de choque, com agentes cada vez mais armados, cada vez mais musculados, acompanhados de cães e não identificados. 

O perímetro de segurança cresceu e a tensão também. Enquanto que, do lado de fora, manifestantes resistiam pacificamente gritando “fascistas”, “vergonha”, e implorando por medidas menos autoritárias, vários agentes ameaçavam com bastões e apertavam braços de quem se atrevia a chegar perto. 

O que se passou na segunda-feira no Largo de Santa Bárbara foi a demonstração de que a repressão policial não é apenas algo que se passa nos Estado Unidos da América, longe das nossas vidas, mas à distância de um retweet. O que se passou na segunda-feira foi uma demonstração de força digna de um Estado autoritário policial que, quando tem de escolher entre ficar do lado de quem está desprotegido ou defender os interesses do capital, não olha a meios para garantir a manutenção do status quo. Mas não nos surpreendamos, é exatamente para isso que as forças de Estado existem: para o manter.

É por isso que, quando no dia seguinte, vi o tweet em forma de propaganda que a conta oficial da PSP publicou, onde, lado a lado com uma fotografia da manifestação, se lê, em letras garrafais, “SERENIDADE e PROFISSIONALISMO”, me pareceu que estão absolutamente certos: serenamente a garantir que a ordem das coisas não muda. Nem que isso signifique agredir jornalistas ou quem se manifesta pacificamente.

Nota 1: Agradecemos ao fotojornalista Luís Pereira pela cedência da fotografia.

Nota 2: Onde se lia “Desde 9 de maio, dois dias antes da Organização Mundial de Saúde declarar a covid-19 como pandemia, que serviam refeições diárias e disponibilizavam casas-de-banho e serviços de lavandaria a quem não tinha teto ou passava por dificuldades.”, foi retirada a menção que, por confusão, se fazia sobre a declaração de pandemia.

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