Opinião

“O pão nosso de cada dia nos dai hoje”, por Pedro Miguel Santos

A mão, semicerrada, nem ainda fechada mas nem sequer aberta, cuspia golfadas de farinha como quem espalha sementes de trigo no campo. Doce ironia. No topo daquela montanha de massa, uma camada de pó branco aumentava, prestes a ser sulcada em forma de cruz. Ao mesmo tempo, as palavras saíam da boca, qual ladainha, sem significado mas significantes, inócuas mas obrigatórias: 

Deus te levede, 
Deus te acrescente, 
Deus te livre da má gente. 

Fecha-se o pano, que é como quem diz, tapa-se o alguidar de barro com o lençol branco de algodão; por cima botam-se-lhe umas mantas de Minde, que é aconchego certo e, horas depois, há massa para levar ao forno. Há-de sair pão. Ou broa. Ou broinhas de Todos os Santos. Ou folares da Páscoa.

Em minha casa, o ritual era este. Fazer pão é uma arte. Cozer num forno a lenha um mister aprendido ao longo de anos e anos, moldado pela paciência e pelo olhar atento de quem sabe ouvir a fermentação do trigo, do milho, do centeio; de quem vê no branco incandescente do tijolo de burro um forno no ponto, pronto a receber o mais primitivo dos alimentos. E parece tão simples: água, farinha, fermento, sal; misturar tudo; esperar que levede; levar a cozer; pão. Se vos disserem, ou se lerem nalgum rótulo, que aquilo a que chamam pão leva mais do que água, farinha, fermento, sal…  lamento, mas não é pão. É outra coisa qualquer. 

Deus te levede, 
Deus te acrescente, 
Deus te livre da má gente. 

Em princípio, um jornalista é como um padeiro: analisa as farinhas disponíveis, tenta perceber a sua qualidade, peneira-as, volta a sentir-lhes o cheiro e a granulagem, experimenta misturar com moagens de outros grãos; une tudo com a melhor água disponível, junta sal a gosto (de acordo com a regras) e deixa fermentar. Espera. Espera. Espera. A notícia e a reportagem podem crescer, levedar a tal ponto que prometa pães de quilo, de crosta tostada e interior fofo. Mas pode a massa não vingar, ter azedado. Ou o forno não ir de modas: queimar a fornada ou não estar quente o suficiente para a fazer alevantar. 

Nada do escrito acima parece fazer sentido hoje. A farinha é toda igual e, se não for, compra-se da que já vem com agente de branqueamento e fermento misturado. A água é filtrada e de PH neutro. O forno nunca morre, nem queima, porque é elétrico e mantém uma temperatura constante. Os padeiros, a maioria deles, já não precisam de muita arte. Basta seguirem as instruções, carregarem nos botões certos, medirem as quantidades como mandam os manuais e, quase por magia, saem todos os dias fornadas e fornadas de pães, cada um mais quentinho do que o outro – não há manteiga no mundo para derreter em tanta massa fumegante. 

“O pão a quem o amassa” é tirada velha. O pão, agora, está aí: embalado, barato, disponível, palatável, sem surpresas, em cada super e hipermercado, que as padarias foram chão que já deu trigo. Fora as Portuguesas ou do Bairro ou do Povo ou da Esquina ou do raio que parta o marketing e a glamourização de um suposto “modo português” de ser e fazer, dá igual o que se mete à boca. Se nos dizem que é pão, se parece pão, se nos sabe a pão, é porque só pode ser pão. Só que não. 

Deus te levede, 
Deus te acrescente, 
Deus te livre da má gente. 

A metáfora vai longa, talvez já faça pouco sentido. Mas foi a que encontrei para vos falar da homogeneização editorial dos principais meios de comunicação social nacionais. Aquela sensação de estarmos sempre a ler, ver e ouvir as mesmas coisas, as mesmas pessoas, os mesmos pontos de vista sempre que um novo tema surge na agenda mediática. Que mistério insondável é este de termos redações tão diferentes a contar as mesmas histórias, a citar os mesmos “senadores”, a mostrar as mesmas perspetivas do real?

Cheira-me ser defeito dos padeiros. Ou melhor, dos chefes da padaria (a mando dos donos da fábrica, claro está – que nunca sabemos que parte têm na receita do pão) e da forma como organizam o trabalho dos outros padeiros, sejam mestres, ajudantes e aprendizes. Falo-vos dessa categoria profissional que virou profissão: os Diretores. É provável que o fenómeno não seja um exclusivo nacional mas cá, por nos conhecermos todos, a coisa torna-se mais evidente. 

Cabe ao diretor de um meio de comunicação social orientar e definir a linha editorial da publicação, TV ou rádio. Pedregosa tarefa. Ou se calhar não. Porque parece ter-se tornado indiferente o meio, a forma de distribuição ou a linha editorial. O importante deixou de ser fazer bom pão, antes, ter pão sempre pronto a vender.

Apesar da diferença entre as fábricas, pode ser-se diretor de um jornal online, de uma rádio, de um diário ou de um semanário sem que isso altere em nada a mistura das farinhas ou a fermentação da massa; pode ter-se sido diretor numa estação pública, querer dar um perna numa agremiação de desporto privada, e voltar sem que isso incomode a padaria; pode trabalhar-se uma parte da vida numa padaria especializada em massas, sair para ir trabalhar para o dono do latifúndio e da moagem e, uns anos depois, voltar para mandar numa das lojas com mais saída do país, fazendo de conta que não se trabalhou para quem aumentou o preço da farinha. 

Há uma liga de diretores, subdiretores, adjuntos que circulam de meio para meio, seja qual for a marca do pão, a normalizar as receitas, a dizer que não há tempo para a massa descansar, a moer aprendizes e estagiários, a despedir mestres confeiteiros porque o dono das máquinas lhes disse que a doçaria conventual é coisa de abadias antigas e o pão de massa velha sabor de avós. 

E depois dão-nos sempre a mesma carcaça, privilegiam o trabalho feito na secretária, a cópia da especialidade da padaria do lado, a “notícia” do “comentador diz que”, a reprodução de qualquer vómito nas redes sociais, a especulação sobre a política dos políticos ao invés do escrutínio das suas políticas, a última macacada viral que alguém lhes enviou no WhatsApp. 

Que opinamos nós, leitores, ouvintes, telespetadores? Reclamos do pão corriqueiro de todos os dias. Salivamos com o cheiro e sabor de um casqueiro a sair do forno, sonhamos com a ideia bucólica do pão trazido a casa, pela manhã, ainda quentinho. 

E dizem-nos que é caro – e é; que não queremos pagar, que as nossas pupilas gustativas não estão preparadas para sabores complexos, difíceis de qualificar. Convencem-nos sobre o benefício do pão sem côdea. 

Eis o que postulamos: os tempos não estão para comer baguetes de loja de grande distribuição. Ou bem que exigimos pão decente, em qualidade e variedade, para toda a gente, ou mais vale mandar fechar as padarias. Precisamos de comida nutritiva, que sacie. Precisamos de bons padeiros, com condições para trabalhar. E padarias onde se queira – antes dos lucros, da notoriedade, da fama – fazer pão. Apenas e só pão. É como quem diz, jornalismo.

No Fumaça, entendemos essa tarefa como uma experiência constante. Respeitamos os princípios – água, farinha, fermento, sal – mas queremos testar muitas receitas. Variar as farinhas, olhar para cereais novos, misturar tudo tantas vezes quantas acharmos necessárias para fazer aquele pão. Experimentar diferentes fermentações. Queimar no forno lenhas e carrascos vários. Aqui não temos chefe de padaria. Temos padeiras e padeiros. Gente de igual para igual a meter as mãos na massa, a testar e a gerir a padaria.

E contamos com a ajuda de quem gosta do que produzimos. Queremos saber a fornada que não lhes saiu da memória; se querem ajudar-nos a amassar; que novas variedades gostavam de provar. Depois, vamos para a rua. À procura dos moleiros, em busca da farinha. Procuramos moinhos a funcionar, interrogamo-nos sobre a pedra das mós, se o grão trucidado com a força da água sabe diferente do triturado com o labor do vento. E perguntamos também sobre os agricultores e o seu grão. Como semeiam os cereais, se são antigos, de variedades esquecidas ou já não há disso? Da germinação daquela semente na terra até chegar já madura à moagem o que acontece? E como vive toda esta gente? Sonha, espera, desespera, crê ou já nem por isso? 

Há também as regras, as leis e as burocracias. E quem as escreve ou manda escrever; e quem as executa ou manda executar e ainda quem as julga ou manda julgar. O desafio, no meio de tamanha empreitada, é fazer pão e não hóstias. 

Deus nos levede, 
Deus nos acrescente, 
Deus nos livre da má gente. 

Este texto foi escrito a propósito da celebração do World News Day, comemorado a 28 de setembro, a que o Fumaça se associou.

Fotografia: Tijana Drinic / Unsplash

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