“Lemos quatro mil sentenças para fazer uma pergunta”, por Nuno Viegas

Olá. 

Enquanto investigávamos as práticas de policiamento em Portugal, representantes do Comité de Prevenção de Tortura do Conselho da Europa, académicos, ativistas e até polícias sugeriram a existência de um padrão: diziam que agentes que cometem atos de brutalidade, de violência para lá do legítimo em funções, para se protegerem, acusam a pessoa agredida de ter resistido violentamente a uma tentativa de detenção legítima. E quem fomos ouvindo notava que, por regra, os tribunais condenam civis acusados de resistência e coação sobre funcionário. Só que não tinham estatísticas para o comprovar.

Em setembro de 2021, pedimos ao Centro de Estudos Judiciários uma mão cheia de dados sobre o crime de resistência em Portugal. Remeteram para a Direcção-Geral da Política de Justiça. Daí, em outubro, chegou o volume, por município, de crimes de resistência registados pelos órgãos de polícia criminal, acusações pelo Ministério Público, e condenações em tribunal nas últimas décadas. Dava para mostrar a desigualdade a nível nacional, concelho a concelho, na frequência do crime. Mas não o que mais nos interessava: a taxa de condenação.

Conseguíamos produzir, apenas, uma aproximação imperfeita. Os processos não terminam no ano em que começam, portanto, mesmo analisando um grande volume de anos para diluir a imprecisão, confiávamos pouco nesses números. Acresce que, nas Estatísticas da Justiça, os dados se referem apenas ao crime mais grave pelo qual a pessoa é condenada. Se a resistência e coação sobre funcionário for julgada com, por exemplo, crimes de tráfico de droga, com uma moldura penal mais elevada, a primeira deixa de entrar nas contas. De qualquer forma, analisados os dados vê-se que, de 2014 a 2021, houve 3950 condenações por resistência, ou 68% das 5819 acusações registadas no mesmo período. Só que isto não é uma taxa de condenação real.

Em junho de 2023, tentámos reduzir o escopo. Pegámos num único juízo, aquele em que tinha corrido o caso de resistência e coação sobre funcionário que deu origem à nossa investigação sobre policiamento, e pedimos à presidência da comarca de Lisboa a taxa de condenação por crimes de resistência aí. Não existia. Pedimos a lista de todos os processos por resistência nesse juízo, desde sempre, e o seu resultado. Não havia meios técnicos para a compilar. Perguntámos se podiam dá-la para um período temporal mais curto. Não era possível. Mas dava para, informaram, “junto do respetivo juízo, requerer a consulta dos livros de registo de sentença”.

Li dezenas de processos judiciais nos últimos anos, mas nunca tinha ouvido falar num livro de registo de sentenças. Não encontrei uma definição online. Perguntei a advogados que conheço, que não conseguiram ajudar. Fizemos o pedido ao Tribunal Local Criminal de Lisboa, sem justificar o interesse, nos termos exatos transmitidos pela presidência da comarca. Num despacho escrito à mão por cima de uma fotocópia do email, fomos autorizados a ler os últimos cem livros.

Um livro de registo de sentenças, vim a descobrir, é um dossier físico onde, sempre que um juiz emite uma sentença, se arquiva uma cópia em papel (até 2022, quando passou a ser digital). Num par de dias, diligentes funcionários judiciais transportaram dezenas desses dossiers, variados em forma e dimensão, do arquivo geral para uma mesa no interior da secretaria do tribunal, e para as estantes próximas. Guardavam todas as decisões proferidas naquele juízo entre 2007 e 2022. Neste juízo em particular, mais produtivo do que a média, esse período abarcava mais de quatro mil sentenças.

Explicaram-me, mais tarde, que ninguém ouvira falar destes depósitos pois eram usados apenas por um pequeno grupo. Os inspetores do Conselho Superior de Magistratura liam estes dossiers (em vez dos processos integrais) para elaborar as avaliações regulares que fazem aos juízes. Pelo menos naquela secretaria, nunca outros haviam pedido para os ler.

Decidi-me a lê-las todas, alternando com o Bernardo Afonso. Na redação, com mais sensatez do que eu, questionaram se seria produtivo tamanho esforço quando ainda mal tínhamos um objetivo de pesquisa. Convencemo-nos de que sim. Montámos um excel onde registámos os números de processo, nomes dos ofendidos e arguidos, crimes de que vinham acusados, sentido da decisão, e pena aplicada ou razão de absolvição. 

E começámos a ler, para encontrar entre essas dezenas de milhares de páginas os 161 processos em que polícias afirmavam ter sido vítimas de um crime em funções, e analisar os acórdãos para compreender como decidia aquele tribunal quando tinha de confrontar a palavra de um polícia e de um civil. Não as lemos integralmente, claro. Aprendemos a chegar às primeiras páginas, apanhar o teor do caso, e saltar os milhares de contraordenações irrelevantes e processos sumários por conduzir embriagado. Mas tivemos de passar os olhos por todas.

Em junho e julho, até me travarem as férias judiciais (e as minhas próprias férias), ia todos os dias ia para o Campus de Justiça, passava a revista e o detetor de metais, subia no elevador, cumprimentava a funcionária judicial que abria a porta da secretaria, passava para a zona reservada a trabalhadores onde nos tinham guardado uma mesa (garantindo que vigiavam o bastante para saber que nem fotografávamos as sentenças nem subtraímos papéis), ligava o computador, metia os phones, e lia. Ansiava ter um dedal com que virar páginas, mas nunca o comprei, portanto ia lambendo o dedo e engolindo pó. E lia. Deixava-me ficar para lá da hora de fecho ao público, a ver se acabava mais rápido para desimpedir espaço de arquivo. E lia. Pontualmente, perguntavam o porquê daquilo tudo: porquê ali, porquê tanto tempo, porquê aqueles casos. Explicava, e lia. Entrávamos juntos e saíamos juntos. Lia e anotava.

Acabámos já em setembro de 2023, quando reabriram a secretaria, encontrando, no total, acusações por 251 crimes contra polícias por ameaça, ofensa à integridade física, injúria, resistência e coação sobre funcionário, e sequestro. A taxa de condenação naquele juízo, para todos esses, era de 84%. Para o crime de resistência, o arguido fora condenado em 79% dos casos.

Na série sobre policiamento que publicaremos com a Divergente daqui a algum tempo, analisaremos e contextualizaremos estes dados durante uns minutos. São uma parte ínfima de um trabalho cujas primeiras entrevistas se captaram em 2018. Na semana passada gravámos mais uma, que hoje publicamos, a Luís Azevedo Mendes, vice-presidente do Conselho Superior de Magistratura. Usamos aí estes números para fundamentar uma pergunta que dura segundos: “Em tribunal a palavra de um polícia vale mais do que a de um civil?”. E, tendo ouvido os dados, assume: “Em princípio, um polícia tem treino profissional e tem obrigações relacionadas com o exercício da sua profissão que conduzem a ter uma determinada credibilidade no sistema de justiça.”

Por causa disto demora tanto tempo o jornalismo que fazemos. Para opiniões, pedimos dados. Quando não há dados, compilamos nós. São meses e meses para alimentar instantes. Anos e anos para produzir uma dezena de horas de áudio contextualizadas, fundamentadas, com verificação de factos frase a frase, edição palavra a palavra, sonoplastia, banda sonora e design original. Tempo, também, para tentar, falhar, desistir, pensar em novas formas de investigar a questão, voltar anos depois, perceber como a fazer, e executar essa pesquisa, demore o tempo que demorar.

É um monumental privilégio profissional poder decidir não fazer mais nada por um mês para além de ler sentenças e preencher um excel. Mas é caro fazer jornalismo quando não há respostas prontas. É caro alocar trabalhadores a peças de fundo, de que só tiraremos proveito anos depois. Mas podemos fazer estas escolhas porque mais de 40% do orçamento do Fumaça é pago por quem nos ouve, vê e lê. 

Isso não chega, claro. Precisamos que nos ajudes a continuar. Faz uma doação mensal para o Fumaça, e garante que podemos investigar até sair dos achismos.

Até já,

Nuno Viegas

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