Opinião

“Preciso que te importes”, por Guadalupe Amaro

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Vi-me obrigada a recorrer a uma angariação de fundos para conseguir obter os cuidados de saúde necessários para concluir a minha transição. Foi a única saída face ao inacesso ao serviço público – e às queixas por parte de utentes, relativas às técnicas utilizadas e resultados obtidos após a cirurgia de redesignação sexual –, e aos custos incomportáveis do sistema privado, baseado numa lógica de comercialização da saúde.

Não só atingimos a meta estipulada em tempo recorde, como iniciámos um debate público que avizinha uma era de mudança. Pela primeira vez, vi uma questão de saúde relativa à comunidade transgénero reclamar espaço na comunicação social. Mas este tema, que nem sequer é transversal a todas as pessoas transgénero, está longe de ser o único obstáculo dum sistema que nos abandona à sua margem.

O artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa estipula que o Estado deve assegurar o direito à proteção da saúde, independentemente das nossas condições socioeconómicas e através duma gestão descentralizada do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Este artigo, entre tantos outros, permanece uma promessa por cumprir. É por isso que te escrevo. A inclusão de pessoas transgénero no SNS, a proteção da nossa privacidade e a autonomia sobre o nosso corpo são como que uma atualização de software que o Estado continua a adiar, prefere “lembrar mais tarde”. Escrevo-te porque não há progresso na luta pela igualdade de direitos sem pressão social. Escrevo-te porque precisamos que te importes e, para isso, precisamos que te informes.

Em 2016, após queixas de utentes, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde realizou uma auditoria à Unidade de Reconstrução Genito-Urinária e Sexual (URGUS) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra que evidenciou a inexistência duma lista de espera cirúrgica e consultas específicas para utentes com disforia de género e insuficiente tempo afeto à unidade pela equipa cirúrgica. A maioria destes constrangimentos continua sem resposta e, na verdade, reduzir as nossas reivindicações à qualidade dos serviços da única unidade de saúde no país capaz de providenciar apoio especializado e multidisciplinar a pessoas transgénero e intersexo é pedir menos do que temos direito.

Tendo em conta a relação mais próxima que têm com utentes e que alguns nos acompanham durante todo o nosso crescimento, a formação e sensibilização de médiques* de família quanto a pessoas transgénero e intersexo deveria ser basilar. Recorrentemente, são o primeiro obstáculo que encontramos no sistema, recusando-se a encaminharem-nos para os serviços adequados, até mesmo com carta de colegas orientando que o façam. E ainda que haja esse encaminhamento, em vários distritos do país, as pessoas trans não terão nenhum hospital capaz de responder às suas necessidades. O simples ato de recorrermos a serviços de saúde, muitas vezes, subentende em si discriminação e o escrutínio da nossa identidade, dos nossos corpos e mentes.  

É-nos exigido que pessoas cisgénero, algumas sem formação adequada e todas alheias ao que é ser-se transgénero, comprovem quem somos com exames psiquiátricos ou psicológicos para que obtenhamos cuidados médicos. Ora por questionarem a nossa identidade, ora por nos verem como intrigantes mutações, os nossos corpos são sujeitos a exames físicos invasivos, feitos sem o nosso consentimento ou sob coação. Pessoas cuja identidade foi já legalmente reconhecida são insistentemente tratadas pelo género incorreto e pelo seu nome morto. Esta violência institucional, que é só uma manifestação da transfobia sistémica entranhada na nossa sociedade cisheteronormativa, leva-nos a escolher não procurar cuidados de saúde por medo e leva a que esses cuidados nos sejam negados por profissionais responsáveis em garanti-los. As realidades que descrevo não aparecem nos jornais, nem nas televisões mas, garanto-vos, vivemo-las todos os dias.

Graças às normas desatualizadas da Direção Geral da Saúde (DGS), que não aplica a evidência científica de que género não é igual a sexo, a exclusão de pessoas transgénero do SNS é gritante ao ponto de não nos incluírem nos rastreios aos cancros de órgãos reprodutores, como do colo do útero e da mama, e sermos instruídes* a aceitar vacinas que podem implicar um maior risco para a saúde. A gestão descentralizada do SNS, prevista no artigo 64.º, não passará dum mito enquanto mastectomias e mamoplastias a pessoas transgénero se limitem a ser feitas na URGUS – embora qualquer cirurgiãe plástique ou de mama do país tenha capacidade para tal. A Estratégia de Saúde para Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo, apresentada pela DGS, em 2019, e que visava responder a parte das falhas até ao final do ano passado, é só mais uma promessa por cumprir. É a nossa saúde mental e física que se deteriora, vidas nossas que são perdidas enquanto o Estado as deixa em espera.

Conto-te isto porque precisamos que te informes e que te importes. Conto-te isto porque precisamos que saibas que a marginalização da nossa comunidade é fatal. Sem um eficaz combate à desinformação por parte de todes*, continuará a passar despercebida à maioria uma crise de Direitos Humanos na saúde. A sensibilização da população em geral sobre a saúde de pessoas transgénero e intersexo é crucial para que as nossas reivindicações sejam ouvidas. As nossas vozes precisam da tua. O que exigimos é o que é nosso por direito. Acesso a serviços públicos de qualidade, um tratamento justo e adequado e o fim da opressão perpetuada pelo Estado – que tem o dever de nos proteger. O que exigimos é que se faça cumprir a Constituição. E eu acredito que as nossas vozes juntas o farão.

*Guadalupe utiliza, em alguns momentos deste texto, uma linguagem sem marcadores de género.

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