“Um brunch com o senhor juiz”, por Nuno Viegas

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Na semana passada, tive a minha primeira “reunião de ovos mexidos”: um brunch oferecido pelo Conselho Superior de Magistratura (CSM) a uns quantos jornalistas que cobrem questões de justiça. A designação é de Luís Azevedo Mendes, vice-presidente do conselho, principal orador numa sala com coisa de dez pessoas vindas das grandes redações de atualidade (que publicaram notícias desde essa conversa), e do Fumaça (que ainda rumina). Esta sessão, com “espaço para a troca de impressões” e sumos de fruta servidos por um senhor de colete, foi organizada pelo gabinete de comunicação do CSM para abordar (cito o convite) “os procedimentos definidos e os aspetos a melhorar” na relação com os média.

Como parte dos média, a minha relação com assessorias de imprensa é, em regra, má. O antigo responsável pelo gabinete de comunicação da Polícia de Segurança Pública bloqueou o meu número de telemóvel, acredito que porque insistia demasiado para que cumprissem o regime de acesso à informação administrativa. A atual responsável pela comunicação da Guarda Nacional Republicana já dedicou uns bons minutos a explicar-me as falhas na minha definição do jornalismo (quando defendi a necessidade de as polícias se abrirem à fiscalização do jornalismo, insistiu em perguntar onde estava a competência para “fiscalizar” no Estatuto do Jornalista, ignorando, talvez, que o estatuto nem a palavra “investigar” inclui). Um membro do gabinete de comunicação da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais ligou-me, este verão, só para dizer que estava chateado por eu tratar o responsável do serviço pelo primeiro nome, em vez de por Doutor (depois de aludir à educação que me teriam dado os meus pais explicou-me que “fica mal”, e continuou: “No dia em que for Ministro da Justiça pode publicar um despacho para o tratarem pelo nome, mas não vai querer”).

Assumo-me como causa de uma boa parte da hostilidade. Sou um burocrata do jornalismo. Gosto de emails impessoais e cartas fundamentadas. É-me difícil compreender que se ofendam por pedir documentos. Espero poder colocar qualquer pergunta sem me ameaçarem com processos por difamação. Conto que as instituições públicas conheçam as suas obrigações legais, e por isso respondo a incumprimentos da lei de acesso a documentos administrativos como crimes lesa-pátria. Apresento queixas à Comissão de Acesso a Documentos Administrativos (CADA, para amigos) quando se viola o prazo de resposta. Avanço com intimações judiciais (quando passarem o Supremo, explicamos). Assumo que, estando ausente razão lógica e legal para me recusarem informação, a receberei. E torno-me intransigente quando percebo, uma e outra vez, que por lei tenho direito a um documento, a uma resposta, agora, amanhã, cedo, mas não a terei, por razão alguma fora incompetência, desinteresse e falta de apreço pela democracia. Aí, frustrado, diria que chego a ser rude na minha insistência, nos telefonemas diários, nos emails semanais. Mais carinhosamente, chamou-me há uns meses o advogado de uma das instituições que processamos para receber documentos “um chato”. Compreendo como piora a situação que eu realmente não seja bom a escrever nem Sr. Dr. nem S. Ex. ª.

Mas nada disto acontece com o Conselho Superior de Magistratura. O CSM tem – esta é a minha tese central – uma boa assessoria de imprensa. Não por ser eficaz a divulgar propaganda, a fazer spin, a marcar agenda. É capaz de ser boa nisso tudo, e dedicou uma boa porção do brunch a explicar a importância do próximo encontro anual do conselho (que começa hoje, na Covilhã, espero que dispensado da minha cobertura), mas nada disso interessa para os propósitos desta newsletter, um raro exercício de elogio na produção jornalística O gabinete de comunicação do CSM é competente porque demonstrou aceitar que o jornalismo é um bem democrático, e não um mal necessário, e reconhecer que jornalistas têm direitos que não se pode ignorar por conveniência.

No último ano, enviei pedidos de acesso a documentos a dezenas de entidades públicas: juntas de freguesia, câmaras municipais, empresas públicas, órgãos de polícia criminal, o que seja. Tem sido esta a minha principal ocupação. A regra é o incumprimento das obrigações de transparência na administração pública (e o desinteresse pelos pareceres da comissão que as rege). Ao Conselho Superior de Magistratura, pedi numa quinta-feira de maio todos os processos de avaliação de uma juíza cujo trabalho andamos a escrutinar. Publicamente, o CSM só divulga a nota de juízes, mas não o relatório inspetivo que a justifica. Recusaram na sexta e explicaram porquê (o que é surrealmente raro): as inspeções a magistrados são confidenciais pelo regulamento interno do CSM.

Nesta altura, quando não me dão documentos a que tenho direito por lei, geralmente faço uma insistência final e preparo a queixa à CADA (se violar eu o prazo para pedir parecer, está perdido o processo). No domingo, argumentei que tinha acesso por lei aos materiais de “gestão de recursos humanos, nomeadamente os dos procedimentos de recrutamento, avaliação, [e] exercício do poder disciplinar”. Na quarta-feira já tinham reconhecido que a interpretação do CSM estava errada. Enviaram toda a documentação que pedi 35 dias após o primeiro email. Falharam o prazo de 10 dias úteis previsto na lei, mas telefonaram todas as semanas a explicar porque demorava (remover dados pessoais). Era como se respeitassem o trabalho dos média.

O Conselho Superior de Magistratura foi a única instituição que, após recusar dar-me informações, as cedeu por reconhecer que estava enganada, sem ser preciso, sequer, fazer queixinhas à CADA. Estão agora a ponderar passar a publicar automaticamente todas as avaliações de magistrados. Quando telefonam, argumentam com lógica. Os pedidos de entrevista não ficam em análise por meio ano (nem digo o tempo que já passei a convencer ministros da administração interna a ao menos recusarem formalmente falar connosco). Usam Whatsapp. Avisam quando se atrasam. 

Vou parar de enumerar elogios que são também apenas descrições essenciais das funções de uma assessoria de imprensa competente. Noto-os para explicar como a raridade dessa capacidade básica de cumprir com as funções que lhes são atribuídas me motivou a ir comer ovos mexidos com o Sr. Dr., que cedo nos disse que, chegados à sua casa, éramos livres de falar mal. E muito criticámos: os tempos de espera para consultar processos, as sentenças que não se publicam, a disparidade de critérios dos tribunais para avaliar pedidos iguais. Sou cético sobre o efeito positivo de conversar comigo em grandes instituições. Mas até têm funcionado ultimamente. Com a PSP, por exemplo, tivemos ontem a nossa terceira reunião conciliatória (num processo promovido pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social de que falaremos quando sair a série Fronteira do Medo). Passamos horas a falar em pessoa, com advogados no meio, dos pedidos de informação que envio. E, devagarinho, chegamos a um espaço de sensatez conjunta.

Nem todos se dispõem a conversar, a colaborar com a comunicação social, a cumprir a lei. A Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais até nos responde a pedidos de contraditório, e lida com perguntas difíceis (sobre violência, racismo, sobrelotação). Não anda a boicotar o jornalismo em geral, nem o Fumaça em particular. Mas nunca reconheceu sequer ter recebido os nossos convites para reunir e falar do trabalho que preparamos sobre o sistema prisional. Recusam dar informação por telefone. Há meio ano que esperamos autorização para visitar estabelecimentos prisionais, sem um email sequer a indicar que estão a avaliar o pedido. Desde agosto que tento que me dêem todos os anexos de um concurso público, sem sucesso. Demora semanas a autorização para entrevistar funcionários que querem falar conosco. A sensação com se que fica, pelo silêncio, pela falta de justificação, independentemente das razões válidas para a demora, é a de não respeitarem nem o tempo, nem o trabalho, nem os direitos de jornalistas.

Nunca lhes ofereci ovos mexidos, é verdade. Talvez ajude.

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