“Uma história de escolhas políticas”, por Margarida David Cardoso

Olá.

Em vários livros vendáveis em bombas de gasolina e supermercados, o economista francês Thomas Piketty dedica milhares de páginas a dissecar a longa história da distribuição desigual de riqueza. É uma ilustração do poder da descomplexada (embora longe de sucinta) escrita para leigos, mas também a demonstração do intrincado esquema que tem protegido e privilegiado a acumulação de capital. A tendência no mundo, nas últimas décadas, tem sido o alívio das desigualdades entre países, mas o adensar dos fossos entre classes dentro de cada fronteira. E Piketty compara este momento com a Revolução Francesa: “Há uma fuga para a dívida pública que se explica porque não se consegue fazer as classes privilegiadas pagarem. Na época, era a nobreza que não queria pagar impostos.” Hoje, é semelhante a recusa na repartição da riqueza acumulada, diz.

A verdade é que conhecemos mal a profundidade da desigualdade. Entre outros motivos, porque os dados fiscais e os frágeis mecanismos de transparência democráticos não espelham a totalidade dos rendimentos e da riqueza de uma ínfima percentagem dos mais ricos. E é pouco profunda a história da desigualdade, por ser limitada a capacidade de “andar para trás” na história económica para aplicar métricas atuais.

Mas é claro que a história das desigualdades é uma de escolhas políticas. Lê-se no Relatório Mundial sobre Desigualdade de 2022 – gerido pelo World Inequality Lab, de que Piketty é codiretor – que, “na sequência de uma série de programas de desregulamentação e de liberalização” das economias, as disparidades de rendimento e de riqueza aumentam desde os anos 80, de forma “espetacular” em países como os Estados Unidos da América, a Rússia e a Índia, e de forma mais contida nos países europeus. É também interessante perceber que nas últimas quatro décadas, globalmente, os países se tornaram significativamente mais ricos, mas os seus governos evoluíram em sentido contrário. A quase totalidade da riqueza está nas mãos de privados.

Já Portugal é dos mais desiguais na distribuição da riqueza entre os países europeus e tem falta de ferramentas para contrariar esse facto. Ao passo que é dos países da OCDE com maior fatia da riqueza detida pelos 1% mais ricos (cerca de 23%), é também daqueles onde a diferença entre a tributação do trabalho e a do capital é mais elevada. O economista Alexandre Mergulhão dá este exemplo em entrevista ao Público: “O único imposto que incide sobre a riqueza é o adicional ao IMI (sobre o património imobiliário), enquanto em Espanha existem quatro impostos sobre a riqueza (não só imobiliária)”. Nas 30 páginas que dedicou ao estudo “A Fiscalidade em Portugal”, divulgado em novembro, Mergulhão faz a defesa (acessível a leigos) de que é preciso usar a fiscalidade progressiva para combater as desigualdades. Mas, primeiro, mandar abaixo alguns mitos sobre impostos:

Assente na ideia de “a carga fiscal em Portugal é, e sempre foi, inferior à média da União Europeia e da área do euro”, defende um reequilíbrio dos alvos dessa cobrança. É nos impostos indiretos e nos impostos sobre o consumo que o país está acima da tendência europeia. E, por serem pagos por todos os residentes, “resultam numa taxa efetiva mais elevada para os mais pobres”, diz Mergulhão. A tendência na última década, tem sido para aumentar esses e baixar os impostos diretos, reduzindo a progressividade do sistema fiscal. O que propõe é inverter a tendência: “Reduzir os impostos sobre o consumo e contrabalançar com impostos diretos e sobre o capital”. Sugere uma maior progressividade do imposto sobre os rendimentos (IRS) e o regresso, por exemplo, de uma tributação, moderada, das heranças (que foi substituída em 2004 pelo imposto de selo).

Investigador sobre finanças públicas e desigualdades, Alexandre Mergulhão é técnico no Ministério das Finanças e doutorando em economia política no ISCTE, em Lisboa. Fez este estudo para o think-tank de esquerda Causa Pública, interessado em promover “mais pensamento progressista”, cuja direção integra os ex-ministros socialistas Paulo Pedroso e Alexandra Leitão, o economista do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra José Reis, Ana Drago (que foi deputada do Bloco de Esquerda, dirigente no Fórum Manifesto Tempo de Avançar) e Rogério Moreira (ex-deputado do PCP, antigo dirigente do BE e Fórum Manifesto).

Alexandre Mergulhão é o próximo convidado do Ask Me Anything Fumaça, uma conversa online entre um especialista e as pessoas que fazem parte da Comunidade Fumaça. Vamos falar sobre impostos e Estado Social. É daqui a duas semanas: dia 7 de março, às 21h, via Zoom. Toma nota na agenda e, se ainda não for o caso, garante o teu lugar nesta comunidade com uma contribuição mensal. 

Até já,

Margarida

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