“O que é a cura de um trauma permanente?” por Margarida David Cardoso

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Não há horas suficientes no dia para que Munther Amira possa dormir. O exército israelita instalou há dias uma arma automática no cimo do muro que cerca o campo de refugiados de Aida, em Belém, na Palestina, a meia dúzia de metros da entrada. “Se vais lá e levantas a mão, vai disparar.” Um miúdo de 12 anos perdeu lá um dedo. No hospital está também outra criança, com a perna amputada após ter sido baleada por soldados. Mas Munther tem que ir para Ain Samiya, uma vila a Este de Ramallah, onde mais de trinta famílias beduínas foram forçadas a abandonar as suas casas depois dos constantes ataques de colonos e do exército colonial. Não têm mais forças para resistir, diz ele. Na outra ponta do distrito, em Ni’lin, o exército explodira com a casa de uma família palestiniana em alegada retaliação pela morte de um israelita. Mas antes, Munther tem que ir ajudar a cuidar do cerejal de um camarada – que pela primeira vez dá fruto –, ladeado por colonatos ilegais. É preciso estar lá fisicamente, usar o corpo – e quantos mais, melhor – para proteger o homem e o campo dos ataques dos colonos, que facilmente acontecem quando lá não está mais ninguém.

Cerejal de Abu Dia, em Acion, paredes meias com o colonato de Efrat.

É indistinguível, para nós, o que nos seus olhos é exaustão, tristeza, ou o natural contorno da vida de um ativista da resistência popular palestiniana. O dia é assim todos os dias. Independentemente do ritmo a que a ocupação israelita se impõe, ele tem que lá estar. Então vai e ficamos com Saed Zboun. Professor universitário de 25 anos, voluntário no campo de refugiados que é a sua casa, anda há quatro horas a acompanhar, traduzir e responder a dezenas das nossas perguntas. Elas continuam a empilhar-se à medida que se aproxima do fim a viagem que faço com o Bernardo Afonso e o Ricardo Esteves Ribeiro, do Fumaça, e a Rafaela Cortez, jornalista freelancer que lidera a investigação em que estamos a trabalhar, sobre a indústria da ajuda na Palestina. Esta newsletter não é sobre isso e, na verdade, a lista de temas sobre o qual poderia ser continua a crescer à medida que a escrevo. Na Palestina, tudo é político e nunca este texto chegará perto de conseguir descrever a distopia do apartheid sionista nos territórios ocupados. Então, ficamos com Saed.

Ele tinha nove anos quando o exército israelita invadiu o quarto onde dormia, com a irmã gémea e o irmão mais novo, perfurando um buraco na parede através da casa vizinha. “Era uma sexta-feira, uma da manhã. Não consigo apagar esse momento da minha cabeça.” Não era a primeira vez que os militares entravam no campo, derrubavam a porta de uma primeira casa, e, lá dentro, destruíam as paredes para entrar na seguinte. Entravam numa e noutra dessa forma, conta. “Foi a coisa mais aterrorizadora que experienciei na vida.” Durante cinco anos, fosse qual fosse o lugar, não conseguia dormir se não fosse no meio do quarto. O irmão, de seis anos, teve pesadelos até aos 11. Todas as noites, gritava com o sonho de que a parede voltava a cair sobre ele. Mas num lugar como Aida – considerado o maior alvo de gás lacrimogéneo do mundo –, o terror é uma frequência habitual. Está-se na mira do exército israelita “em qualquer momento, em qualquer lugar”, e a morte de crianças acontece por engano.

Por isso, Saed formou-se em Psicologia em busca de respostas para esse sofrimento constante. Haveria formas de impermeabilizar ou poupar as crianças ao trauma permanente, repetido e demolidor que está embrenhado nele, nos irmãos, na família, nos vizinhos? O trabalho no campo – que é também casa –, rapidamente lhe mostrou que não há forma de curar algo que não para de existir. Cura só uma: a libertação da ocupação israelita da Palestina, com o fim da condição de refugiados e a garantia absoluta dos seus direitos.

E Saed vai colocando à nossa frente os desenhos que comprovam que a dimensão do problema é pouco permeável àquilo a que chamamos terapia. Quando lhes pediu para desenharem livremente, nenhum dos miúdos do Aida Youth Center, entre os oito e os 14 anos, fez um mar azul com o sol amarelo no canto da página que ele estava à espera de ver. Das mãos de Selma, de 10, saíram dezenas de caras tristes, enfileiradas umas atrás das outras, num caminho sem retorno a casa – símbolo da catástrofe, a Nakba, em curso desde 1948, quando 700 mil pessoas foram expulsas das suas terras. Tanques e soldados, que mais parecem máquinas, ladeiam o percurso. Há aviões que lançam bombas do ar, há o muro e há tiros.

Desenhos de Selma, 10 anos, refugiada no campo de Aida, em Belém. 

Páginas antes, havia uma família com um ar feliz – que vive fora do campo e não vislumbra o terror que antecede o próximo ataque –, e uma igreja ao lado de uma mesquita ao lado de uma sinagoga. É só um sonho. A realidade é um campo de precários edifícios de cimento que tem câmaras a toda a volta, sete torres de vigia e uma arma automática no topo do muro ao fundo da rua, que se move com os passos de miúdos como ela. Não são só instrumentos de perseguição e ameaça física, mas principalmente psicológica. “Israel quer que sintamos que estamos sempre a ser vigiados. É algo que nos afeta imenso, especialmente às crianças.” Algumas definem os limites da sua existência no muro que as separa do resto dos territórios ocupados. Como quem nasce numa prisão e não imagina outro mundo.

Talvez a arte possa ser uma forma de aliviar parte desse colosso de sofrimento psicológico, acredita Saed. Pode ajudar as crianças a expressar emoções e a criar mecanismos mais saudáveis para lidar com a opressão. Mas na maré contra a eficácia da psicologia, há também a construção de que, como palestinianas, as pessoas têm que ser heroínas: não tremer, não chorar, resistir constante e absolutamente, todos os dias. “Estamos a ser colonizadas, oprimidas, humilhadas, mas aqui dizemos ‘Não. Se mostrarmos as nossas fraquezas, significa que eles nos ganharam’. Pode ser um bom sinal, mas tem grandes custos a longo prazo.” O autocuidado é um capricho. “A psicologia branca aqui não é muito eficaz. E, no fim de contas, não somos heróis nenhuns. Resistimos à ocupação porque o resto do mundo nos abandonou há 75 anos e estamos conscientes de que ninguém nos trará justiça se não nós mesmos.” 

Selma desenhou também pessoas alinhadas para uma execução, em frente a tanques militares. A cena lembra o massacre da vila de Kafr Qasem, em 1956, quando, regressados a casa do trabalho, 50 palestinianos foram mortos a tiro, em fila, por quebrarem uma ordem de recolhimento, criada nessa manhã, que não sabiam que existia. “Não há nenhum lugar onde seja suposto uma criança de dez anos desenhar assim. Como é isto se trata? Pode-se tratar o medo permanente?”

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