“Há quanto tempo não pedes um documento?”, por Nuno Viegas

Olá.

O Ministério da Justiça viola a lei. A Câmara Municipal de Tomar viola a lei. A Gebalis viola a lei. A Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais viola a lei. A Junta de Freguesia de Santa Clara viola a lei. E a Polícia de Segurança Pública (suspiro melancólico), a Direção Nacional da PSP, bem que viola a Lei de Acesso a Documentos Administrativos (LADA). Este é um mural da vergonha muito específico, das nossas lutas recentes, mas discricionário: podiam ser muitas e outras as organizações públicas nomeadas. Umas não respondem nos prazos, outras não justificam recusas, muitas exigem que se justifique os motivos do pedido, raras nem respondem aos reguladores estatais, e umas poucas ainda se ofendem por se pedir um papel. 

A essência da LADA está em pedir papéis. Por regra, sem ter de dizer para que quer aquela informação, qualquer pessoa pode requisitar a todas as instituições públicas os documentos na sua posse: contratos, procedimentos disciplinares, informação estatística, quase tudo o que emane da atividade executiva. O acesso a informação administrativa é um mecanismo de transparência constitucionalmente garantido (art.° 268) para nos permitir conhecer dos organismos do Estado não só as suas decisões, mas também a fundamentação, operacionalização e avaliação, com limitações expecionais. É pelas leis de transparência que se constrói uma cidadania informada, com condições para a participação fora dos dias de voto.

Mas a LADA é um mecanismo largamente ignorado num Estado que tem vindo a proclamar a centralidade da participação cidadã nos processos decisórios. Os dois partidos que mais largamente o governam escrevem nos seus programas eleitorais para este domingo 81 vezes a palavra “transparência”. Só que este manifesto de intenção colide com a prática. Avanço uma única métrica para o grau de desrespeito. Têm, desde 1993, todas as entidades sujeitas ao regime de acesso à informação administrativa de nomear um funcionário responsável por o fazer cumprir. Em 2023, 30 anos volvidos, das cinco mil instituições abrangidas, havia 263 responsáveis registados. Só 0,5% da administração pública cumpre um dos dois pilares fundacionais da LADA.

A violação faz-se por todas as vias. As entidades públicas exigem justificações para os pedidos de acesso (quando não são necessárias), não justificam as recusas (mesmo quando têm razão, para proteger a privacidade, a segurança interna, ou outros interesses fundamentais do Estado), não indicam os mecanismos de recurso, não seguem qualquer prazo, não assistem na especificação de pedidos quando os acham vagos demais, procuram aplicar exceções inexistentes, e – com frequência que me surpreende –, por vezes, simplesmente mentem sobre a informação que possuem. O incumprimento é de tal forma reiterado e generalizado que inviabiliza o uso deste direito constitucional como ferramenta de investigação jornalística ou escrutínio cidadão: é preciso esperar demasiado, lutar por tempo demais, desperdiçar horas e horas a apresentar queixas, recursos hierárquicos, e insistir nos pedidos, para nada conseguir. Para quem produz jornalismo de atualidade é uma lei de parca utilidade. Para quem, como eu, é pago para ser profissionalmente chato é possível dar-lhe uso, mas à custa de doses irrazoáveis de frustração pessoal.

Em países em que cumprir as leis de acesso a documentos é prática e não exceção, o seu uso quotidiano permite escrutinar realmente a atividade pública. Em 2023, Azmat Khan demonstrava no The New York Times como mísseis e bombas norte-americanas mataram milhares de civis no Iraque e na Síria por se basearem em informações erradas ou dispararem sem precisão suficiente, nem consideração pela vida humana. A base da investigação são 1300 relatórios confidenciais dos próprios militares, entregues à jornalista não por uma fuga de informação de fonte anónima, mas por uma sucessão de pedidos de acesso a informação baseados no Freedom of Information Act.

Aqui, podes fazer a tua própria experiência de contraste: pede informação a uma entidade europeia, a que se aplicam leis de acesso com tempos iguais aos portugueses – dez dias úteis para enviar os documentos pedidos pela via preferencial do requerente. Podes pedir, como fizemos, ao Conselho Europeu de Investigação “todo e qualquer documento sobre o uso da força ou o viés étnico-racial nas polícias portuguesas”. Receberás, sem se queixarem de o pedido ser vago nem de terem de rasurar troços, uma centena de páginas por email em duas semanas, mais uma cópia em papel no mesmo mês, sem custos. Depois pede à Câmara Municipal de Tomar os planos para o seu novo sistema de videovigilância (aproveitando um dos exemplos acima), e espera por mais de quatro meses – como nós – que devolvam algo para lá da nota quinzenal: “Encarrega-me o senhor presidente, Hugo Cristóvão, de acusar a receção da comunicação infra, que mereceu a nossa melhor atenção, a qual vai ser objeto do devido encaminhamento.” Muitas instituições públicas não tentam sequer aproximar-se do cumprimento das parcas obrigações de transparência a que estão sujeitas.

Há um recurso quando ignoram pedidos de acesso a documentos, ou os bloqueiam sem justificação legítima: qualquer um pode fazer queixa à Comissão de Acesso a Documentos Administrativos (CADA). Depois de ouvir as duas partes, a CADA emite parecer favorável ou desfavorável à entrega dos papéis. À comissão, a equipa autárquica do socialista Hugo Cristóvão, nem respondeu. Mas mesmo que tivessem feito chegar qualquer justificação nada obriga a que cumpram os pareceres não vinculativos da comissão: têm apenas de emitir uma posição final fundamentada dez dias após receberem a posição da CADA. O que, aliás, também não fez a Câmara Municipal de Tomar, após parecer indicando que “não se revela que a entidade requerida tenha cumprido o dever de resposta”. O prazo acabou ontem.

É preciso ir a tribunal para forçar a adesão à LADA, já que, ao contrário das leis de privacidade ou do regime de segredo de estados – ambos usados de forma abusiva para impedir o acesso a documentos –, não há qualquer sanção por violar estas obrigações de transparência. Cabe aos cidadãos processar o Estado português, recurso após recurso, até que acatem uma ordem judicial. O Fumaça tem dois processos em curso, contra a PSP – que até 2023, de que encontremos registo, nunca tinha seguido um parecer da CADA indicando que deveriam dar informação a jornalistas – e a GNR. Cabe ao lado mais fraco fazer com que se cumpra a lei.

Vamos a tribunal porque temos tentado realmente usar o acesso a documentos como ferramenta de investigação. Mas forçar o cumprimento tem custos, monetários e relacionais. A Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (que quando acha um pedido vago demais, em vez de cumprir a obrigação legal de assistir à sua identificação, se contenta em nem o apreciar) passou a acrescentar às suas respostas a pedidos de documentos uma nota que enquadra o ato burocrático como uma quasi-ofensa pessoal: “Manifesta-se estranheza pelo facto de todas as respostas que esta Direção-Geral tem vindo a dar a pedidos deste órgão de comunicação social suscitarem pedido de verificação documental do que foi transmitido, num procedimento que nem a generalidade dos organismos nacionais e internacionais com competências inspetivas têm no exercício do seu trabalho inspetivo.”

Leva-se a mal a transparência, porque não se tem dela hábito. Também os cidadãos desconhecem o seu direito de acesso e, não o exercendo regularmente, permitimos que se perpetue a cultura de fechamento da administração pública. A tentar contrariá-la, anda um grupo belga-alemão de geeks do acesso a informação que gere uma plataforma de pedidos de documentos a instituições europeias a que chamam FragDenStaat. Foi uma palestra deles (e os trabalhos de José António Cerejo no Público) que me fez afogar no regime de acesso à informação. Traduz-se FragDenStaat por “Pergunta ao Estado”. Devíamos perguntar mais ao nosso. E tu, quando foi a última vez que pediste um documento? Escolhe um, qualquer um, e dá uso à LADA.

Se ainda não sabes bem como, ou o que podes pedir, ouve antes a entrevista que hoje publicamos. Para discutir os meandros da nossa lei de acesso a informação administrativa, como foi simultaneamente ampliada e manietada desde 1993, como e por que se lhe foge, e o que podemos fazer para a fortalecer, falámos com Sérgio Pratas, jurista na CADA, e coordenador de um estudo sobre a aplicação desta lei que será publicado em abril. Adiantamos nesta entrevista, que podes ouvir aqui ou na tua aplicação de podcasts, as suas conclusões, incluindo a contabilização de que apenas 0,5% das instituições públicas podiam ficar de fora de um mural da vergonha mais exaustivo do que o do início deste texto. 

Prometo que isto não é aborrecido,

Nuno Viegas

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