“Produtividade sem descanso”, por Isabél Zuaa

“É o dever de um artista refletir os tempos.”
Nina Simone

Aqui, a frase de Nina Simone tem sido uma constante fonte de inspiração para mim nos últimos anos, especialmente durante os meus processos artísticos, que naturalmente incorporam uma variedade de interseções sociais e políticas. Esta citação ressoa profundamente em mim, mas não vejo a reflexão dos tempos como um dever, encaro-a como um privilégio. Ter a capacidade de usar o meu corpo e a minha voz para contar histórias que inspiram e criar utopias que desafiam a realidade, é algo que valorizo imensamente. Nos meus projetos artísticos, tenho tentado substituir o tempo linear, uma visão ocidental, pelo tempo espiralado refletido nas visões afrocentradas onde o passado, presente e futuro coabitam no mesmo espaço-tempo permitindo outras possibilidades de existências.

Refletir sobre o tema desta partilha livre levou-me a outros questionamentos, sobre mim, sobre dentro, sobre sinceridade e sobre este texto ser escrito na primeira pessoa. 

Reconheço-me como herdeira do trabalho árduo, uma herança que transcende qualquer ofício específico. A estratégia é: triplicar o meu esforço, multiplicar o meu tempo e dividir-me entre diferentes espaços e compromissos. Mesmo atrasada nessa matemática, persisto como uma trabalhadora exímia, desafiando os meus próprios limites para alcançar os meus objetivos, tanto os pessoais quanto aqueles impostos pelo mundo ao meu redor.

Durante muito tempo, romantizei a ideia de que para ser alguém, precisava realizar três vezes mais para ser considerada boa. E boa não era o suficiente. 

A minha formação foi fortemente influenciada pelos meus pais, que enfrentaram jornadas de trabalho exaustivas. Embora as minhas circunstâncias sejam diferentes, mantenho a mesma lógica de acumulação de trabalho em busca de uma autonomia financeira, que ainda é um dos pilares fulcrais da minha autoestima.

Somos herdeiras do capitalismo ocidental globalizado, cujas raízes estão profundamente entrelaçadas com o imperialismo e o colonialismo. Esta herança cultural perpetua o preconceito, a violência, as guerras e a exploração à escala global, enquanto nos condiciona a valorizar as pessoas e os territórios com base na sua produtividade e sucesso material.

Mesmo hoje, quem ouse contrariar o poder do capital, continua a ser punido, pelos outros e por si próprio, por não se enquadrar no sistema e não corresponder às expectativas. Essas punições são bastante severas: (auto) rejeição, marginalização, até a experiência mais radical de violência, a morte.

No cerne deste sistema está a ideia de que a produção constante é essencial para a nossa validação e sobrevivência. Esta mentalidade mantém-nos num ciclo de exaustão ininterrupto, onde até o repouso é visto como um luxo dispensável. Confesso que muitas vezes vejo-me refém deste ciclo e sinto-me culpada por fazer algo tão simples e natural como descansar.

O projeto capitalista, juntamente com as suas evoluções recentes, está estruturado de tal forma que a pausa e a reflexão são desencorajadas, e a produção contínua é incentivada a todo o custo. É certo que precisamos produzir para podermos descansar. No entanto, questiono se esta liberdade aparente proporcionada pelo capitalismo é verdadeira, ou se é apenas uma ilusão que nos mantém presos num ciclo interminável de consumo e trabalho. Quem realmente tem direito ao descanso numa sociedade que valoriza apenas a produtividade e o lucro?

É através do repouso que podemos verdadeiramente conectar-nos connosco próprias, sonhar com o inimaginável e expandirmos as nossas existências. Descansar permite-nos embarcar entre os tempos, habitar linguagens que nós próprias inventamos, é liberdade. É descobrirmo-nos no gesto. É presença. É inspiração. É não competir. É poder errar e ficar em paz com o não acerto. Inclusive aqui e agora, escrevendo estas palavras, onde está o meu descanso e a minha liberdade de não ter que corresponder a uma expectativa desta partilha?

Aqui.

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