“Até já”, por Pedro Miguel Santos

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A ti
de ti
por ti
para ti
sem ti
ante ti
perante ti
depois de ti
longe de ti
fora de ti
além de ti
contra ti
sobre ti
sob ti

dentro de ti

Aleluia, Jorge Sousa Braga
De O Novíssimo Testamento e outros poemas (2012, Assírio & Alvim)

[Ouve este e outros poemas ditos pelo autor na POESIA.FM]

A minha avó Teresa usava uma expressão que me fazia sempre rir: “A vida é uma passagem.” Podia ser sobre a morte de uma vizinha, alguém ter adoecido, uma dificuldade: “A vida é uma passagem.” Divertia-me o tom fatalista, porque ela enunciava aquelas palavras como se estivesse, ao mesmo tempo, a revelar um grande segredo e uma verdade universal. O seu ar muito sério, temente a deus – benza-a zeus! – espoletava em mim tudo menos seriedade; dava-me mais para a heresia. A sua lapalissada tinha, como é óbvio, um significado mais profundo. É para aí que vou. 

O título desta newsletter começa como costumam terminar. Há uma razão: é uma despedida. Deixei de fazer parte da equipa Fumaça. A minha relação laboral terminou no final de abril. Também já não pertenço à direção da Verdes Memórias, a associação sem fins lucrativos que detém o órgão de comunicação social, da qual me demiti em março passado. O meu processo de saída tem sido discutido e preparado com a equipa no último mês e meio. 

Agora, a pergunta difícil, porquê? A verdade é que não tenho uma resposta simples, não há uma razão única. Ando há semanas a pensar neste texto, escrevi e reescrevi não sei quantas versões, e acabei sempre nesta imagem: como numa relação, muitas vezes, não basta o amor para que ela resulte. 

Juntei-me ao, na época, É Apenas Fumaça de uma maneira caricata. Trabalhava no projeto Rios Livres, da associação ambientalista GEOTA, quando recebemos um pedido de entrevista de um podcast. Nunca tinha ouvido falar neles, nem nunca tinha ouvido um podcast. Estávamos no outono de 2016. Combinámos um café para nos conhecermos e ficámos de encontrar uma data para a entrevista. Entretanto, por acaso, sou ouvido na manifestação “Salvar o Clima, Parar o Petróleo”. No início de tudo, além das entrevistas, não podia haver um protesto em Lisboa que a malta do É Apenas Fumaça não fosse lá fazer a cobertura. Era um segmento chamado Na Rua. 

Chega dezembro e eu e a Ana Brazão (a coordenadora do Rios Livres) vamos à prova de fogo defender a causa, explicar o que fazíamos. Podem ouvir-nos. A conversa foi gravada numas antigas instalações dos CTT, na Avenida Casal Ribeiro, em Lisboa, ocupadas pela empresa onde a Maria trabalhava. Até se profissionalizar, em 2018, e ter uma redação própria, era assim que o É Apenas Fumaça funcionava: reuniões, entrevistas, investigação… tudo era feito onde fosse possível. Lobbies de hotéis, salas vazias de locais de trabalho, cafés, casas uns dos outros… Voltando à entrevista que mudou a minha vida. Subimos a um andar meio desocupado, meio arrumação e, durante quase uma hora, fomos desafiados a provar os nossos argumentos, tivemos tempo de explicar as nossas teses, quem fazia perguntas ouvia as nossas respostas. Jornalismo. Feito de forma profissional, competente, interessada. O contrário do que costumava ser a nossa experiência no Rios Livres sempre que tentávamos explicar a complexidade dos temas que tratavamos e a sua gravidade à maioria da comunicação social. 

Umas semanas mais tarde enviei esta mensagem ao Ricardo: 

Gosto muito do vosso trabalho e gostava de poder ajudar no Fumaça. Não sei bem como, em que moldes ou se vocês sequer precisam de algum tipo de ajuda. 
Mas queria saber se precisam de mais alguém que faça os programas/entrevistas convosco.
Se quiseres tomamos um café ou um copo e falamos melhor. 
Um abraço.

Era 22 de janeiro de 2017 quando me encontrei com a equipa do É Apenas Fumaça, no Café Tintim, na Avenida de Roma. Disseram que sim, que era bem-vindo. Exultei. O resto, fomos construindo. Quando ganhamos a primeira bolsa estrutural e nos pudemos finalmente profissionalizar, então é que ninguém nos parou mais! Com imensa garra, vontade de fazer coisas novas, desafiar o status quo do jornalismo nacional. E se há coisa de que tenho a certeza é do que escrevi no Facebook um dia depois de nos apresentarmos com nova imagem, já só Fumaça, na Casa da Imprensa, a 21 de julho de 2018: 

Se um dia eu tiver 90 anos, vou querer contar que ontem lançámos um órgão de comunicação social. Vou lembrar as peripécias, as discussões, o que nos movia, os nossos sonhos, o caminho, os erros, as vitórias.

Mesmo que eu nunca tenha 90 anos, vou lembrar para sempre o privilégio maior que foi ter a Margarida Tengarrinha, do alto da sabedoria dos seus 90 anos, a falar-nos da sua vida, do que foi lutar pela Liberdade, de como se fez este país democrático que nos permitiu ontem apresentar Fumaça.

Se um dia eu tiver 90 anos, vou contar esta história a uma jornalista do Fumaça, quando estiverem a celebrar umas dezenas de anos de vida e forem falar com as pessoas que quiseram construir uma nova casa de jornalismo independente, progressista e dissidente.

Não se esqueçam, “a vida é uma passagem”, como dizia a minha avó Teresa. E nós temos muitas vidas. Também no Fumaça fomos mudando: como projeto editorial, como pessoas, como coletivo. Estamos vivos, por isso mudamos. E isso é bom. Deixo a equipa, mas o Fumaça segue. Quem sabe se um dia não volto? 

Até já 🙂 

PS: Caso queiram contactar-me, respondam a esta newsletter, que dar-vos-ei retorno. Se o assunto for estritamente pessoal, escrevam para [email protected].