Aborto

Aborto: O corpo delas, as regras deles

My body, my rules. Ou, em português, “O meu corpo, as minhas regras”. Em Portugal, as mulheres podem decidir interromper voluntariamente a gravidez, durante as dez primeiras semanas de gestação. Cá e em dezenas de outros países. Mas é preciso não esquecer que esta é, ainda, uma realidade recente, e que até há bem pouco tempo, as mulheres em território nacional não tinham o direito a decidir. Só em 1968 foram eliminadas as discriminações de género em atos eleitorais. As conquistas sobre o próprio corpo são ainda mais recentes e sinalizam uma reivindicação global longe de estar finalizada.

Em Portugal já não é assim, mas há lugares em que um aborto espontâneo significa prisão, onde uma interrupção voluntária da gravidez (IVG) – um aborto – vale 14 anos de encarceramento. Era esta a moldura penal máxima prevista, até este ano, na Irlanda – país membro da União Europeia (UE) -, pela realização de um aborto em condições ilegais – o mesmo que dizer sempre que a vida da mulher não se encontrasse em risco. E mesmo as conquistas podem, mais tarde, dar lugar a retrocessos.

No Brasil, algumas propostas levadas a Congresso visavam proibir o acesso ao aborto mesmo em casos em que a vida da mulher estivesse em risco, ou em casos de violação – os casos em que a lei brasileira atualmente prevê o acesso legal à IVG. As conquistas, mesmo as mais limitadas, não são, pois, irreversíveis, como se demonstra. Portugal faz parte de um lote privilegiado de países que asseguram às mulheres o acesso ao aborto seguro, sem restrições, desde que realizado até às dez semanas de gestação.

Fomos convidados a estar numa conferência organizada pela Campanha Internacional pelo Direito das Mulheres ao Aborto Seguro, realizada em Lisboa, no passado mês de setembro, que juntou cerca de 110 ativistas e especialistas de todo o mundo. Fomos o único meio de comunicação social português presente e falámos com mulheres que lideram a luta pelo acesso ao aborto seguro, um pouco por todo o mundo.

Da Irlanda – que aprovou este ano, em referendo, o acesso à IVG até às 12 semanas de gestação – às Filipinas – país em que é proibido e criminalizado em qualquer circunstância -, procurámos traçar o estado presente dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres a nível global. Em 2014, o Centro para os Direitos Reprodutivos – uma organização internacional que luta juridicamente pela saúde e direitos reprodutivos em todo o mundo, mostrava como mais de 60% da população mundial continuava sem poder aceder ao aborto seguro sem restrições. Em 2017, o cenário não tinha melhorado muito.

Até que todas tenham os mesmos direitos e garantias, a regra parece continuar a ser “o corpo delas”, mas “as regras deles”. Até quando?

Foto: Bernardo G. [CC BY 2.0], Flickr

Transcrição

PARTE I

A 25 de novembro de 1992, era assim que Judite de Sousa, no Telejornal da RTP1, retratava o panorama relativo à lei do aborto, em Portugal. Antes, em 1984, a prática tinha deixado de ser proibida. Até aí, mesmo com a vida em risco, uma mulher não podia parar a gestação.

lei número 6/84 veio permitir a interrupção voluntária da gravidez (IVG) em casos de perigo para a vida da mulher, perigo de lesões graves para a saúde física e psicológica, casos de violação e malformações no feto.

Mas isto não aconteceu sem luta, como mostrava o canal público. A 26 de Janeiro de 1984, milhares de mulheres e homens manifestaram-se em frente à Assembleia da República, em defesa da aprovação dos projetos-lei sobre a legalização da interrupção voluntária da gravidez, num exercício de pressão sobre os representantes para que se alterassem as regras legais.

Mais tarde, em 1997, a lei sofreu novas alterações (lei 90/97) e passou a incluir situações de “crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da mulher”. No ano seguinte, quando a Exposição Mundial de 1998 inundava o país de euforia e de uma certa ideia de abertura e cosmopolitismo, a despenalização do aborto nas primeiras dez semanas de gestação ia a referendo. Foi rejeitada à tangente, com o “NÃO” a vencer com 50,9% dos votos.

Esta consulta, tinha sido convocada na sequência da votação de um projecto de lei do PS, apresentado no Parlamento pelo deputado Sérgio Sousa Pinto, que despenalizava o aborto até às 10 semanas e que tinha sido aprovado em Plenário com votos a favor dos deputados do PCP e d’Os Verdes e da maioria dos deputados do PS, e votos contra de quase todos os deputados do PSD e de todos os deputados do CDS-PP. Mas, no dia seguinte, António Guterres – então primeiro-ministro de um governo minoritário do Partido Socialista – anunciava ter chegado a acordo com Marcelo Rebelo de Sousa, à data líder do PSD, para a realização de um referendo.

As influências católicas destes dois homens foram motivação suficiente para travar o avanço da lei na Assembleia da República, mesmo que Guterres fosse líder do PS, ideologicamente à esquerda, – em teoria – mais propensa a defender o SIM. No fim, venceu a abstenção: 68,11% de ausentes fizeram com que o referendo não tivesse carácter vinculativo. O assunto acabaria por ficar em lume brando, durante quase uma década.

José Sócrates: A primeira e a principal razão que nos levou a pedir a convocação deste referendo é que nós queremos combater a vergonha nacional do aborto clandestino.

Em 2007, José Sócrates governava no conforto da primeira maioria absoluta na história do PS. Marcelo Rebelo de Sousa, atual Presidente da República, era, na altura, o grande comentador televisivo do país. Aos domingos, falava no canal público da RTP, num programa chamado “As escolhas de Marcelo”. Mas, ao contrário de si próprio, o Professor não queria mulheres a escolher. Defendia que na questão do aborto as mulheres não tinham soberania sobre o seu próprio corpo, e que tinham de “ouvir alguém”. Encabeçou a campanha pelo NÃO, no segundo referendo ao aborto. Para ele, a mulher tinha que aconselhar-se e justificar-se. Elencou num famoso vídeo as razões que, no seu entender, as mulheres não podiam invocar na hora de escolher abortar: “Assim não”, era este o nome da campanha.

Marcelo Rebelo de Sousa: Um incómodo momentâneo, uma mudança de residência, uma depressão ligeira, um estado de alma inconstante. Ninguém a convida, sequer, a refletir. Basta isso para decidir do destino daquela vida humana. Ora, assim não.

O SIM venceu, com mais de 59% dos votos. A pergunta era: “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”. Hoje – e como resultado do referendo de 2007 – as mulheres podem decidir abortar em Portugal, por opção, durante as 10 primeiras semanas de gravidez. Retire-se a ironia ao discurso de Marcelo Rebelo de Sousa e encontra-se aquela que é a grande reivindicação de quem defende o direito ao aborto:

Marcelo Rebelo de Sousa: Pode abortar porque sim. Tem de ouvir alguém? Não.

Se, em Portugal, estes direitos já foram garantidos com sucesso, noutros pontos do globo são, ainda, uma miragem.  

O Fumaça esteve numa conferência da Campanha Internacional pelo Direito das Mulheres ao Aborto Seguro, em Lisboa, que decorreu entre 5 e 7 de setembro. Realizada no maior dos secretismos, por motivos de segurança de quem participava, fomos o único meio de comunicação social português presente.

O resultado da cobertura que aí fizemos é esta reportagem a que demos o nome: “O corpo delas, as regras deles”

Esta reportagem foi escrita por mim, Frederico Raposo, e por mim, Tomás Pereira.

Seja toda a gente bem-vinda ao Fumaça.

PARTE II

Campanha Internacional pelo Direito das Mulheres ao Aborto Seguro reúne mais de 1300 organizações e pessoas, de 119 países no mundo inteiro e tem sede em Lima, capital do Perú. Congrega associações sem fins lucrativos e não governamentais, pessoas individuais, agências públicas e profissionais de saúde, ativistas de direitos humanos, jornalistas, estudantes e académicos e tem como objectivo construir uma rede internacional de organizações para promover o aborto seguro.

Esta campanha é financiada por várias associações de planeamento familiar e saúde reprodutiva que a integram e também por fundações privadas. Por uma questão de transparência, saibam que uma delas é a Open Society Foundations (OSF) – que atribuiu este ano ao Fumaça uma bolsa de apoio ao jornalismo independente, no valor de 100 mil dólares [cerca de 80 mil euros] – e que, segundo os relatórios de atividades da Campanha, lhes financiou atividades em 2016 e 2017. Também o Centro para os Direitos Reprodutivos, o Instituto Guttmacher, a Somos Muchas e a Rede Global de Mulheres pelos Direitos Reprodutivos, entidades de que falaremos mais à frente nesta peça, recebem ou receberam fundos da OSF, diretamente ou indiretamente.

A organização realizou o congresso num hotel do Parque das Nações, em Lisboa, em setembro passado.

Juntaram-se cerca de 110 ativistas e especialistas, homens e mulheres, de todo o mundo, para falar e debater o estado das leis relativas ao aborto nos seus países. De Moçambique às Honduras, da Irlanda às Filipinas, do Brasil ao Egipto, o panorama internacional do direito das mulheres à escolha foi exposto. Num ano com marcos importantes, como a vitória do sim no referendo na Irlanda, que repeliu a 8ª emenda da sua Constituição que tornava o aborto ilegal, e de alguns retrocessos, causados, por exemplo, pelas alterações na política de apoios externos a educação sexual dos Estados Unidos da América (EUA) e seu presidente, Donald Trump, este encontro serviu de fórum de aprendizagem e partilha de experiências. 

Foram dias envoltos em secretismo. Em países onde o aborto é ilegal, muitas destas ativistas são perseguidas. E mesmo onde é legal, situações dramáticas acontecem em eventos deste género, quando protestantes anti-aborto se mobilizam para os desestabilizar. O mesmo acontece muitas vezes em frente a clínicas de saúde onde são efectuados abortos.

O jornal inglês The Independent noticiava, em maio deste ano, que segundo a norte-americana Federação Nacional pelo Aborto, o número de ameaças de violência a estas clínicas tinha duplicado, em 2017, nos EUA, numa –  e cito – “escalada de hostilidade” para com estes consultórios e as mulheres que os visitam.

Nesse ano, a cadeia de televisão NBC noticiava que – segundo o National Clinic Violence Survey de 2016 [levantamento anual da Feminist Majority Foundation, realizado desde 1993] –  a violência antiaborto tinha atingido os valores mais altos dos últimos 20 anos. No primeiro semestre de 2016, um total de 109 clínicas que realizavam abortos nos EUA – 34,2% das 319 que responderam ao inquérito, num total de 740 contactadas – relataram episódios de “violência severa ou ameaças de violência”: de invasões das instalações a ameaças de morte a funcionários e ameaças de bomba ou de fogo posto.

Nos EUA é legal abortar: em vários estados sem qualquer limitação, noutros até à vigésima ou vigésima quarta semana e, noutros ainda, o procedimento médico encontra-se unicamente dependente do conceito de viabilidade – ou seja, o potencial de o feto sobreviver fora do útero.

Por isso, percebem-se as precauções tomadas pela organização em manter a conferência envolta num manto de secretismo. O Fumaça era o único órgão de comunicação social português presente e, mesmo assim, com acesso limitado. A dado ponto entrámos numa das sessões para cinco minutos depois sermos convidados a sair da sala, sem razão aparente. A organização desfez-se em desculpas pelo sucedido mas, pelos vistos, a presença de jornalistas não deixava as e os participantes confortáveis. Ainda assim, falámos com várias ativistas.

Laura Molinari: O meu nome é Laura Molinari e sou brasileira. Estou a participar num congresso da campanha internacional pelo aborto seguro, em Portugal.
Tomás Pereira: E por que é que estás aqui?
Laura Molinari: Fui convidada para participar. Na verdade, é um evento que reúne ativistas, académicos, médicos e juristas do mundo todo que fazem advocacy pelo direito ao aborto seguro.

Laura Molinari é ativista pelo direito à escolha. É uma das muitas brasileiras que enfrenta uma lei bastante restritiva no que toca ao aborto, criminalizado na esmagadora maioria dos casos. Há, no entanto, algumas excepções:

Laura Molinari: A gente tem três casos em que ele é autorizado: em caso de estupro – gravidez decorrente de estupro -, quando a mulher corre risco de vida ou quando o feto é anencéfalo. Mas o estigma ainda é muito grande, então é muito difícil que uma mulher tenha acesso a aborto legal, porque os hospitais e os próprios médicos que fazem o procedimento, alegam objeção de consciência. Então, a situação das mulheres ainda é de uma taxa de mortalidade alta e de adoecimento por causa da criminalização do aborto.

É difícil perceber quais são as taxas reais de mortalidade e adoecimento no Brasil decorrentes de abortos. O facto de a prática ser criminalizada na maioria dos casos faz com que muitas mulheres optem pela clandestinidade. Isto distorce as estatísticas já que os abortos realizados desta forma não entram nos dados oficiais.
Numa peça da jornalista Isabella Mayer de Moura, de Dezembro de 2017, na Gazeta do Povo, lia-se: “Muitos dos dados que circulam hoje na internet sobre aborto no Brasil são exagerados, incompletos ou antigos. Por se tratar de um crime não existem números oficiais que possam referenciar o debate”.

E mesmo depois de haver dados, a polémica não morre. Fernanda Câncio num artigo de opinião publicado no DN, em Fevereiro de 2014, na celebração dos 7 anos de referendo, ironizava: “Esta semana ficámos a saber uma coisa escandalosa: desde que foi legalizado o aborto, ocorrem muito mais abortos legais do que quando o aborto era ilegal. Naturalmente, há quem, chocado com este estado de coisas, proponha soluções. A mais óbvia, proposta pelo Governo espanhol, é ilegalizar: não deixa de haver abortos, mas passamos a ignorá-los, só dando conta deles quando morre uma mulher ou é desmantelado um negócio abortivo.”

Neste “2:59”, programa do Expresso Online, publicado em julho de 2017, a jornalista Carolina Reis detalha os números oficiais, na data em que se assinalava uma década da entrada em vigor da despenalização da IVG em Portugal:

Carolina Reis: Com a nova lei aprovada, e com o registo obrigatório, foi possível ter dados sobre a interrupção voluntária da gravidez (IVG). Os números dizem que há cada vez menos abortos em Portugal. Houve um aumento no início da crise, mas tem vindo a diminuir. Em 2015, foram feitas 15873 IVG a pedido da mulher. São menos 1,9% do que em 2014. Se olharmos para 2008, o primeiro ano com a lei em vigor, vemos que hoje se fazem menos 10% dos abortos. 

No Brasil, mesmo sem conseguir medir a realidade com precisão, os movimentos pró-escolha têm estado ativos para mudá-la:

Laura Molinari: Desde 2015, que a pauta voltou à tona, especialmente por causa de um projeto de lei que queria mudar o protocolo de atendimento às mulheres vítimas de violência sexual. Elas não teriam mais acesso à pílula do dia seguinte, nem a aborto legal e isso fez as mulheres tomarem as ruas do Brasil, foi um grande acontecimento. A proposta foi barrada…
Tomás Pereira: Mas houve uma manifestação em torno disso?
Laura Molinari: Sim, no Brasil todo. Foram milhares de mulheres e reacendeu a pauta, porque por mais que o projeto de lei falasse sobre violência sexual no geral, de facto o que mais mobilizou as mulheres foi o aborto. O aborto tomou uma centralidade no movimento.

Laura continua a falar-nos da luta dos movimentos pró-escolha no Brasil.

Laura Molinari: E depois disso, no ano passado, houve outra proposta para criminalizar o aborto, protegendo a vida desde a conceção e essa proposta também levou milhares de mulheres às ruas, esse ano com as argentinas, avançando no debate. As brasileiras também foram às ruas, em apoio, e a gente teve uma discussão muito importante na Suprema Corte, uma audiência pública sobre uma ação que pretende descriminalizar o aborto até à décima segunda semana de gestação. Houve festivais pela vida das mulheres no país, as mulheres fizeram atos, então é uma pauta que está aquecida no movimento.

Uma ação proposta pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) pede ao Supremo Tribunal Federal, a Suprema Corte que Laura referia, para deixarem de ser criminalizados os abortos até às 12 semanas de gravidez. O que está em causa são os artigos do código penal n.º 124, que criminaliza a mulher, e n.º 126, que criminaliza os profissionais de saúde.

Do lado oposto da barricada, os movimentos pró-vida retaliam, explica Laura:

Laura Molinari: Apelam sempre a um direito divino à vida de quem não nasceu, em detrimento da vida da mulher, e a gente tem algumas figuras que são muito polémicas e que geralmente buscam a violência, a perseguição, a ameaça às ativistas. Então, mesmo nos atos de rua, a gente tem uma preocupação com segurança, porque geralmente eles aparecem, a nossa sorte é que nós somos muito maiores. Por mais que eles façam barulho, a gente é muito mais forte.

Apesar de Laura referir que os movimentos pró-aborto são maiores, isto não representa o que, de facto, a sociedade Brasileira, no seu todo, pensa do assunto. Segundo o atlas eleitoral do El País Brasil, a 20 de Outubro passado, 73.9% dos Brasileiros eram contra a legalização do aborto.

Além do que se passa nas ruas, as ativistas pró-escolha enfrentam também dificuldades ao nível político e institucional. O Congresso Brasileiro teve em cima da mesa, ao longo dos últimos anos, várias medidas que iam no sentido de aumentar o espectro de criminalização do aborto.

Laura Molinari: Existem várias propostas no Congresso para criminalizar todo o tipo de aborto. Seria um retrocesso, a gente não iria ter mais os permissivos legais que hoje existem para o aborto. Uma das propostas transformava o aborto em crime hediondo [e] aumentava a pena dos médicos e das mulheres e garantia a proteção à vida do nascituro, que seria uma pessoa – que não é pessoa -, enfim, uma vida, supostamente não nascida ainda, que teria os mesmos direitos que a mulher.

Algumas das propostas apresentadas no Congresso:

            PL 5069 de 2013 – Aumenta a tipificação do crime de aborto e representa passos atrás nos direitos adquiridos no apoio às vítimas de violência sexual

           Proposta de Emenda à Constituição – PEC 164 de 2012 – . que altera a introdução do artigo 5º da Constituição Federal para estabelecer a “inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”.

           PEC 29 de 2015 (Senado) – Idêntica à PEC 164/2012, também altera a introdução do artigo 5º da Constituição Federal para estabelecer a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção.    

           PL 478 de 2007 – O tal que Laura Molinari referia, conhecido como “Estatuto do Nascituro”, baseia-se no conceito de “direito à vida desde a concepção” e transforma o aborto em crime hediondo. Eliminaria até mesmo a possibilidade da interrupção da gravidez nos poucos casos hoje permitidos, como violação, risco de vida da mulher e deformações graves no feto.

Acresce a isto que Jair Messias Bolsonaro foi eleito, no passado domingo, Presidente do Brasil.

O então candidato do Partido Social Liberal, apoiado pela direita conservadora, é frontalmente contra a descriminalização do aborto. Durante a campanha foi rápido a desmentir algumas notícias que o davam como favorável ao aborto. Foi claro.

Mesmo Fernando Haddad, candidato derrotado do Partido dos Trabalhadores, que defrontou Bolsonaro no segundo turno, assinou um manifesto comprometendo-se a não legalizar o aborto, depois de se reunir com líderes evangélicos.

Parece claro que nenhum dos dois candidatos parecia disposto a contribuir para a luta das ativistas pró-escolha. Mas Bolsonaro representa uma força de oposição militante e motivada:

Tomás Pereira: Como é que o movimento pró aborto no Brasil vê a possibilidade de ter Bolsonaro presidente em breve?Laura Molinari: Eu acho que o Bolsonaro é a figura que sintetiza tudo o que o movimento de mulheres já passa, especialmente na luta pelo aborto, há 15, 20 anos. Porque por mais que hoje em dia a situação política esteja grave, o movimento pelo aborto, em particular, sempre teve que lidar com esse tipo de situação, com esse tipo de pessoa. Nesse momento, basicamente qualquer coisa pode acontecer no Brasil, mas a gente também não espera que o executivo legislativo seja o responsável por avançar no aborto, no Brasil. O que a gente está apostando muito é na Suprema Corte e, de qualquer forma, existe um trabalho de base nos hospitais, um trabalho mais underground.
Tomás Pereira: Um trabalho de base em relação a quê?
Laura Molinari: Para que a gente consiga garantir o acesso, porque a gente já tem uma regulamentação de como é o aborto legal no Brasil, por exemplo. Então, a nossa luta é para que, de facto, os hospitais, os médicos – é por uma mudança cultural e uma redução do estigma sobre o aborto para que as mulheres já tenham acesso, pelo menos, ao que elas já têm garantido por lei. E em termos de avanço, a gente de facto está apostando em outros caminhos.

De acordo com o Centro para os Direitos Reprodutivos, uma organização internacional que luta juridicamente pela saúde e direitos reprodutivos em todo o mundo, o Brasil faz parte do conjunto de países mais críticos no que respeita às restrições no acesso ao aborto seguro.

São 66 países, e representam mais de um quarto (25,5%) da população mundial, em que o aborto ou é totalmente proibido, ou é permitido apenas quando a vida da mulher está em risco.

Se o aborto tem acesso restrito no Brasil, em vários países da América Central é legalmente impossível ou perto disso. Segundo um estudo publicado na revista científica inglesa The Lancet, apresentado em 2017 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em parceria com o Instituto Guttmacher – uma organização destinada a promover o avanço na saúde e direitos reprodutivos -, foram realizados 25 milhões de abortos não seguros todos os anos, entre 2010 e 2014. O trabalho demonstra uma clara correlação entre leis restritivas e as taxas de aborto inseguro e revela que na América Latina apenas um em cada quatro abortos são realizados em segurança.

Na Guatemala, onde o aborto só é permitido em caso de a gravidez pôr em perigo a vida da mulher, era apresentado o ano passado, no congresso, a iniciativa de lei 5272 (cinco dois sete dois) que procurava aumentar as penas para as mulheres que abortassem. O diploma previa multas e o aumento das penas de um a três para de 15 a 25 anos de prisão.

Posteriormente, foi alterada, passando a contemplar penas de cinco a dez anos. Segundo uma notícia da BBC, de setembro passado, a lei está em vias de ser debatida no Congresso, para posterior votação, e deverá ser aprovada. A mesma lei passava ainda a prever penas de dois a quatro anos de prisão para mulheres que sofram abortos espontâneos, num claro atentado aos Direitos Humanos.

Em El Salvador, o enquadramento legal é o mesmo, como conta esta reportagem do canal France 24, realizada no passado mês de agosto. 

Elsi Rosáles e Teodora Vasquéz passaram, respectivamente, 10 meses e 10 anos na prisão.

Neste país da América Central, o aborto está debaixo de um regime de proibição absoluta, desde 1998. Ainda assim, existem movimentos que se organizam para liberalizar o acesso ao aborto, pelo menos nas condições previstas pela Organização Mundial de Saúde: em caso de perigo para a vida da mulher, violação ou malformações do feto. Outros, lutam para manter a lei de proibição total.

Nas Honduras, a situação não é muito diferente.

Vanessa Siliezar: Não. Nas Honduras não é permitido o aborto em nenhum caso, nem sequer nas três causas que a Organização Mundial de Saúde (OMS) promove nos governos, porque procuram salvar a vida das mulheres, procuramos evitar a pobreza nas raparigas abusadas, que não pediram para serem mães, e procuramos evitar a tortura do corpo e na vida das mulheres quando chegam a uma gravidez que se sabe que não vai terminar bem.

Vanessa Siliezar faz parte da “Somos Muchas”, uma rede de ativistas e coletivos que luta pela despenalização do aborto nas Honduras. Também aí, tal como em muitos outros países, da América Central, o aborto é totalmente ilegal.

Vanessa fala em questões de classe no acesso ao aborto em segurança, onde as mulheres mais pobres ficam em desvantagem.    

Vanessa Siliezar: As mulheres de classe média estão a abortar nos hospitais privados das suas comunidades e saem de lá quase imaculadas. (…) O aborto é um privilégio de classe a nível mundial. E naqueles países em que não é permitido, só abortam as mulheres com dinheiro.

A religião desempenha também um papel importante nas limitações ao acesso ao aborto num país com muitos representantes católicos e protestantes. A direita hondurenha detém maioria no parlamento, liderada pelo Partido Nacional das Honduras, do presidente Juan Orlando Hernández – um partido com visões conservadoras e nacionalistas. Mas mesmo o partido Liberal Hondurenho, uma formação mais centrista, reiterou o ano passado a sua posição contra o aborto, durante a campanha que antecedeu as eleições desse ano: [0:00 – 0:37]

Já depois do ato eleitoral do ano passado, o Congresso hondurenho travou o avanço de reformas às leis que criminalizam o aborto em todos os casos, numa altura em que as Honduras debatiam um novo código penal.

Vanessa Siliezar: As nossas mulheres pobres, as nossas mulheres do campo, as nossas mulheres analfabetas, que não têm acesso a educação sexual, num país em que o parlamento é comandado por fundamentalistas católicos ou fundamentalistas protestantes e onde a voz das mulheres e dos homens, dos jovens, não se escuta, o resultado são mais mulheres pobres jovens a morrer.

As questões religiosas e de classe, às quais se junta ainda o panorama político Hondurenho, interligam-se profundamente. as há ainda um outro dado que ajuda a explicar o panorama do direito à escolha das mulheres nas Honduras: o estatuto de ex-colónia Espanhola.

Vanessa Siliezar: Enquanto ex-colónia espanhola, vimo-nos afetadas por todo este tema, não só social, mas obviamente religioso e judicial. As nossas leis mudaram a partir do século XVII e continuaram a ser uma cópia das leis espanholas, argentinas e chilenas. Não é de estranhar que os códigos penais centro-americanos sejam uma cópia do Chile, Argentina e Espanha, já que essa foi a base da criação da lei penal na América Latina. Então, houve um movimento de flexibilização em todos estes países, com a permissão do aborto para fins terapêuticos, mas o regresso da extrema direita que vivemos nos momentos da Guerra Fria tirou-nos esses direitos enquanto mulheres e deram-nos, novamente, à Igreja, essa Igreja que continua a governar muitos dos nossos países.

A proximidade com os Estados Unidos, também desempenha um papel preponderante.

Vanessa Siliezar: Estamos demasiado perto dos americanos, dos ‘States’, e isso é mau. É mau porque estar tão próximo dessa visão protestante torna a sociedade mais conservadora.

Para Vanessa, tudo isto dificulta a luta da “Somos Muchas”:

Vanessa Siliezar: Somos Muchas é uma esperança. É uma possibilidade, depois do golpe de Estado nas Honduras, em 2009, em que houve uma polarização que dividiu, inclusivamente, o movimento feminista. É novamente a violência para com os nossos corpos que nos une enquanto plataforma e deixa para trás estas diferenças. Sentámo-nos para lutar num contexto muito difícil, em que o país aumenta o orçamento para ‘el army’, para o exército, e diminui-o para a Educação e para a Saúde. Somos Muchas é a reunião de um grupo de mulheres corajosas, de jovens com muita esperança e com muita vontade de mudar uma realidade terrível, já que este é um dos únicos países que criminaliza totalmente o aborto, em qualquer uma das circunstâncias.

O legado colonial Espanhol está ainda presente noutras partes do mundo. Nas Filipinas, por exemplo, o código penal ainda bebe muito da influência que outrora a potência Europeia exercia na região, como nos explica Marevic Parcon.

Marevic Parcon: O [nosso] código penal é um código penal muito antiquado. Vem, basicamente, de muito atrás, de quando estávamos sob domínio dos espanhóis. Todo aquele conceito de penalizar mulheres por terem abortado é basicamente ditado e imposto por nós, pelos católicos e a sua forte oposição aos direitos sexuais e reprodutivos nas Filipinas.

Marevic é diretora executiva da Women’s Global Network for Reproductive Rights, uma Organização Não Governamental (ONG), com sede nas Filipinas, mas que trabalha em todo o mundo, pela saúde e direitos sexuais e reprodutivos. Foi fundada nos Países Baixos, em 1984 mas, em 2008, a sede da organização passou de Amesterdão, nos Países Baixos, para Manila, capital das Filipinas.

Nas Filipinas, o aborto é ilegal. Em todos os casos. Rodrigo Duterte, atual presidente, subiu ao poder em 2016 e a sua demanda pelo fim do consumo e tráfico de droga resultou no assassínio de mais de 20 mil pessoas, com o seu patrocínio. Quase 120 mil presos e mais de 1,3 milhões entregaram-se às autoridades. Estes são números orgulhosamente apresentados no relatório do governo filipino que faz o balanço do ano de 2017, intitulado: “Os Acontecimentos Chave do Relatório de Final do Ano de 2017 da Administração Duterte” [The Duterte Administration Year-End Report 2017 Key Accomplishments].

Rodrigo Duterte: A guerra às drogas ilícitas não vai ser posta de lado. Pelo contrário, será tão implacável e arrepiante, se assim quisermos, como no dia em que começou.

A guerra às drogas vai continuar, tão implacável e arrepiante como no dia em que começou. Foi isto que o presidente das Filipinas disse em julho deste ano, durante o seu discurso do Estado da Nação.

Num país em que há carta branca para matar quem consome drogas e em que a violação dos Direitos Humanos é a norma aberrante – como retrata a Human Rights Watch no seu relatório mundial de 2018 – em que são referidos ataques a jornalistas, a defensores dos direitos humanos e assassinatos por parte das autoridades locais -, é fácil imaginar que as mulheres não estejam devidamente protegidas também no que respeita ao seu direito pelo aborto seguro.

Aliás, o próprio Duterte abusou publicamente da sua posição de poder para demonstrar o seu machismo, quando em junho deste ano coagiu publicamente uma mulher, que lhe era estranha, a beijá-lo, perante uma plateia em êxtase coletivo.

Fez apelo para que as forças armadas do país atinjam a tiro os órgãos sexuais de mulheres rebeldes, comentários sobre as pernas da vice-presidente das Filipinas, Leni Robredo, e a apologia à violação de mulheres.

Nem mesmo para salvar a vida da mulher é possível abortar nas Filipinas. Esta é uma realidade que não veio com Duterte, há muito que é assim. O código penal filipino é, para a ativista, um dos mais restritivos do mundo no que toca à prática do aborto.

Marevic Parcon: O estatuto legal do aborto nas Filipinas é um dos mais restritivos de todo o mundo. Não há exceção clara: é penalizado – uma mulher que seja apanhada a abortar ficará na prisão até seis anos; até a pessoa que a ajuda. (…) A opinião pública predominante é a de que é imoral, é a de que é matar bebés, basicamente.

Nas Filipinas, a influência da igreja católica é grande e a opinião pública é esmagadora na sua recusa do direito a abortar. E as mesmas mulheres que abortam consideram a prática imoral.

Marevic Parcon: As mulheres que acedem ao aborto são aquelas mulheres que tomam parte de toda esta conversa que diz que [o aborto] é imoral, etc. (…) O perfil das mulheres que abortaram é:católica, casada, com três ou mais filhos, etc.

Católicas, casadas, com três ou mais filhos. Os abortos não desaparecem.  Continuam a fazer-se, mas sem segurança, à custa, muitas vezes, da vida da mulher – sobretudo quando esta é pobre.

Marevic Parcon: Generalizadamente, o aborto é estigmatizado. O aborto é estigmatizado, mas isso não significa que não seja praticado. O aborto é uma prática comum no país, mas não é seguro.

Os dados de que Marevic dispõe pintam a figura da insegurança que se vive no país, fruto da falsa moralidade. Afirma que todos os dias morrem três mulheres em resultado de abortos não seguros, dado que não seguimos confirmar através de outras fontes. Serão mais de mil mortes por ano. A Campanha Internacional pelo Direito das Mulheres ao Aborto Seguro, dá conta do cenário, negro. Denuncia que uma mulher filipina é violada a cada 58 minutos e 1em cada 9 mulheres filipinas que abortam são sobreviventes de violação. Algumas das vítimas de violação são forçadas a recorrer a abortos clandestinos, inseguros. Outras tentaram o suicídio.

Constituição do Estado das Filipinas, na seção 12, Políticas de Estado, prevê – e cito:“O Estado reconhece a santidade da vida familiar e deve proteger e fortalecer a família enquanto instituição social autónoma elementar. Deve proteger de forma igual a vida da mãe e a vida do nascituro desde a conceção.”

Embora a Lei Fundamental do país seja recente, de 1986, a sua redação tem fortes marcas da influência católica. É há uma razão para assim ser:

Marevic Parcon: Há um lóbi forte para não permitir que as mulheres possam exercer a sua autonomia e a sua liberdade reprodutiva. (…) Então, esta nova Constituição foi inscrita pelos católicos com aquela expressão da ‘proteção igual’.

O conceito de ‘proteção igual’ concede ao nascituro, ou seja, ao feto, mesmo na sua fase inicial de desenvolvimento, a mesma proteção legal de que uma mulher goza. Marevic vê isto como uma imposição do catolicismo dominante no país desde o domínio colonial espanhol. Perdem a saúde e os direitos sexuais das mulheres filipinas.

Mesmo à luz das palavras inscritas na Constituição, Marevic tem a sua própria interpretação, enquanto ativista e diretora da Women’s Global Network for Reproductive Rights. Se se fala em ‘proteção igual’ – para a mulher e para o nascituro -, então não se deve deixar uma mulher morrer.

Marevic Parcon: Nós defendemos que o aborto terapêutico seja permitido, porque se dizes que há ‘proteção igual’ entre a vida do nascituro e a vida da mulher, então basicamente também estás a salvar outra vida. Depois questionamos que vida é que estamos a salvar…

Se não se salva a vida da mulher, fica a pergunta: que vida resta para se salvar?

Marevic Parcon: Temos um movimento pró-escolha nas Filipinas. Temos esta rede de apoio ao aborto seguro e estamos a fazer muito trabalho. Chamamos à nossa estratégia uma ‘estratégia 3D’.

Apesar da opinião pública – esmagadora na sua condenação do aborto – há, nas Filipinas, um movimento pró-escolha.

A estratégia dos ‘3 D’s’ – em que a organização de Marevic trabalha – aposta na descriminalização do aborto – (decriminalization), pelo fim do estigma (destigmatization) e pela desmistificação do procedimento (demystification).

Marevic Parcon: Tens a descriminalização como uma das estratégias – porque as mulheres estão a ser presas por abortarem, assim como os prestadores de serviços; a desestigmatização do aborto, porque é necessário que tu desestigmatizes o aborto – não fales do aborto de uma forma negativa, porque é uma realidade, porque acontece; e desmistificar a experiência do aborto, porque é só normal.

As mulheres sempre abortaram. O trabalho de Marevic e da Women’s Global Network for Reproductive Rights passa agora por procurar mudar a opinião pública e esse é um trabalho de base. Porque – diz ela – o aborto “é só normal”.

Marevic Parcon: O aborto é simplesmente normal. (…) O aborto é tão normal que conheces várias pessoas que abortaram – como a tua prima, a tua irmã, a tua mãe ou a tua vizinha, etc.

PARTE III

Na Irlanda, o aborto foi a referendo no dia 25 de maio deste ano. A participação foi expressiva: 64% dos eleitores votaram. Desses, 66.4% consideram que a mulher deve passar a poder decidir terminar voluntariamente uma gravidez até às 12 semanas de gestação.

Durante a conferência da Campanha Internacional pelo Direito das Mulheres ao Aborto Seguro, realizada em Lisboa, encontrámos Grainne Griffin, co-diretora da campanha ‘Together for Yes’, que junta dezenas organizações da sociedade civil irlandesa pela remoção da oitava emenda à constituição. Introduzida em 1983, a emenda reconhecia o direito igual à vida para a mulher grávida e para o nascituro.

Grainne Griffin: O referendo aconteceu por causa de anos e anos de trabalho duro de muitas mulheres no terreno, que têm vindo a clamar por mudança há anos e décadas, de facto.

Com a adição da Emenda Constitucional, em 1983, a vida de uma mulher passou a valer tanto quanto a vida de um feto. Passava a ser possível abortar – em teoria – quando a vida da mulher estivesse em risco. As mulheres que abortassem ilegalmente incorriam numa pena de prisão que podia chegar aos 14 anos.

Para Grainne, a oitava emenda tinha uma agenda única: impedir que o aborto não pudesse nunca acontecer. O SIM no referendo removeu esta emenda da constituição.

Grainne Griffin: Não havia aborto na Irlanda em 1983 e a emenda procurava garantir que nunca mais haveria. Dizia que o nascituro igualava a vida da mãe em termos de importância e garantia proteger isso mesmo.

Durante décadas, muitas das mulheres irlandesas que procuravam abortar em segurança, tinham de viajar até Inglaterra para o fazer.

Grainne Griffin: O referendo preocupou-se com o trabalho e a voz das pessoas jovens. Foi um movimento real pela mudança. Foi galvanizado por um sem número de razões, mas ganhou energia e propósito depois da morte de Savita Halappanavar.

“Legislem agora!”, gritava-se nas ruas de Dublin, depois da morte de Savita Halappanavar, talvez o grande motor para o sucesso da campanha.

Savita morreu em 2012, porque o país lhe recusou a hipótese de abortar. Era uma jovem indiana de 31 anos a viver e trabalhar na cidade irlandesa de Galway. Às 17 semanas de gestação foi ao hospital, com dores. Tinha começado um processo irreversível que resultaria num aborto espontâneo. A equipa médica entendeu não induzir o aborto. “Este é um país católico” – ter-lhe-á dito um dos médicos, segundo peça televisiva da Al Jazeera.

O hospital não realizava o aborto. ‘Este é um país católico’ – um médico ter-lhes-á aparentemente dito. Ela morreu de infeção sanguínea, em agonia.

O aborto espontâneo demorou sete dias. Morreu em agonia, de sépsis – uma reação inflamatória sistémica devido à presença de bactérias no sangue que pode levar à falência de órgãos.

O que o hospital parece ter feito é decidir colocar a vida de uma mulher em perigo, de modo a proteger o direito de um feto que não tinha hipóteses de sobreviver.

A salvaguarda de um feto sem hipóteses de sobrevivência ditou a morte de Savita. As pessoas saíram à rua e a questão reentrava outra vez na agenda mediática.

Grainne Griffin: O aborto espontâneo era inevitável. Foi-lhe recusado o aborto porque ainda existia um batimento cardíaco no feto. Embora eles soubessem que a gravidez não poderia continuar, foi-lhe recusado o aborto, ela contraiu sépsis, uma infeção, e morreu disso. Uma mulher jovem morrer de uma doença prevenível num hospital de classe mundial na Irlanda foi algo que chocou e envergonhou o país por inteiro e convenceu as pessoas de que algo tinha de mudar. Assim, a organização começou, em particular, de 2012 em diante.

A lei irlandesa não permitia o aborto, só em casos em que a vida da mulher estivesse em risco. Não foi suficiente para Savita.

O direito de não morrer quando a vida de uma mulher grávida estava em risco existia, mas para Grainne Griffin só existia por princípio teórico. Na prática, a conversa era outra. Savita morreu.

Grainne Griffin: Quando Savita morreu, em 2012, ainda não havia legislação, não havia linhas orientadoras nem nenhuma maneira de aceder a esse direito [de abortar]. Existia, em teoria, o direito de não morrer durante a gravidez, mas não existia na prática.

O papa Francisco visitou Dublin, capital da Irlanda, em agosto deste ano.

Fê-lo no âmbito do Encontro Mundial de Famílias, que citando o website oficial, “junta famílias de todo o mundo para celebrar, rezar e refletir sobre a importância central do casamento e da família enquanto pilar das nossas vidas”.

Grainne acha que não há coincidências. Diz que a República da Irlanda sempre foi vista como um bastião católico importante no mundo Ocidental e que, com a pressão que rodeava a realização do referendo, uma visita da figura mais proeminente da Igreja de Roma poderia aumentar as possibilidades do voto no “NÃO”.

Grainne Griffin: É provável que a razão pela qual a Irlanda foi selecionada como o local para receber o Encontro Mundial de Famílias – e essa decisão foi tomada há alguns anos atrás – tenha sido pelo facto de existir uma forte consciência de que a pressão, na Irlanda, estava a crescer e de que a Irlanda iria provavelmente ter um referendo sobre o aborto. E, em termos de organizações católicas, internacionalmente, a Irlanda foi sempre vista como estrategicamente importante enquanto país Ocidental desenvolvido sem [direito ao] aborto. E é estrategicamente importante dizer que esperávamos que a marcação do Encontro Mundial de Famílias e a visita do Papa tivessem sido originalmente marcadas para aumentar a pressão pelo voto no ‘Não’ no referendo.

Se era esse o objetivo, a visita do Papa falhou-o, considera.  

Grainne Griffin: No final, a visita do Papa não teve impacto absolutamente nenhum e não teve absolutamente relação nenhuma com o referendo. Inclusivamente, a visita do Papa deu-se com níveis muito mais baixos de engajamento e de participação do que era inicialmente esperado. Nada a ver com a última visita, nos anos 70.

A partir do momento em que a nova lei passar a ser aplicada – Grainne explicou-nos que isso pode ainda demorar algum tempo – as mulheres deverão poder abortar até às 12 semanas de gravidez, sem restrições. No momento de votar, as linhas orientadoras da legislação que viria a ser adotada caso o SIM ganhasse eram bem claras:12 semanas, sem restrições. Os 64% de eleitores inscritos que participaram na votação sabiam o que significava inscrever a cruz no SIM. E o SIM ganhou, numa campanha a que até os pais de Sativa se juntaram pelo SIM.

Grainne Griffin: Quando fomos às urnas, o Governo publicou antecipadamente os princípios da legislação, porque queria ser muito claro com as pessoas sobre aquilo que elas estariam a votar. E um dos aspectos mais importantes era o de que seriam 12 semanas sem restrições e foi sobre isso que muita da discussão e muito do debate à volta do referendo aconteceu.

O processo legislativo está a decorrer e, agora, a expectativa da ativista irlandesa é a de que o acesso das mulheres ao aborto sem restrições seja uma realidade já a partir de 1 de janeiro de 2019.

Grainne Griffin: Agora estamos no processo em que a legislação vai ser aprovada brevemente e, depois disso, serão introduzidas as linhas orientadoras para os profissionais de Saúde. O governo comprometeu-se a introduzir o acesso ao aborto a 1 de janeiro de 2019, na prática, mas continuamos na expectativa de ver se vai, ou não, cumprir o prazo definido.

O Fumaça contactou a Abortion Rights Campaign – movimento pró-escolha de que Grainne é fundadora e membro da direção – para perceber o atual estado do processo legislativo. Por agora, o cenário é o seguinte: a oitava emenda foi oficialmente removida, mas – citando a resposta que recebemos – “nada mudou em termos práticos para as pessoas grávidas na Irlanda. Até que a legislação passe e os serviços sejam disponibilizados localmente, as pessoas continuam a ser forçadas a viajar ou a importar, fora da lei, comprimidos para abortar” – fim de citação. O Ministério da Saúde continua a apontar para janeiro de 2019, ainda que – segundo nos explicou, por email, Anna Carnegie, da Abortion Rights Campaign  – “este intervalo de tempo seja visto como pouco realista por muitos”. Ainda assim, Anna tem dúvidas. À data da edição desta reportagem, faltava ainda conhecer o resultado das emendas propostas à Lei, que terminou na passada semana. Para Anna, mantêm-se ainda entraves, por exemplo: um período obrigatório de três dias de espera, a objeção de consciência por parte dos profissionais de saúde, uma terminologia médica vaga, uma linguagem não inclusiva das pessoas trans, bem como a criminalização do pessoal médico que auxilie mulheres a abortar fora dos termos legais a definir. Até que a nova Lei entre em vigor, os direitos das mulheres na Irlanda continuam em risco.

Os direitos das mulheres são violados todos os dias. Não só nos países em desenvolvimento, mas em qualquer lugar onde o machismo exista, sobretudo na Lei. As conquistas não são definitivas e a defesa do direito à saúde sexual e reprodutiva das mulheres, assim como a decidir a sobre o próprio corpo, são uma luta constante.

É que o passado, pode sempre voltar

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