Opinião

“Quem colocou a extrema-direita no centro do debate presidencial?”, por Ricardo Esteves Ribeiro

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Foi ao 26.º minuto do quinto debate televisivo para as eleições presidenciais que se deu o momento mais revelador da cobertura jornalística desta campanha. Clara de Sousa moderava para a SIC a conversa entre Ana Gomes e Marisa Matias (completando, aliás, um momento raro de televisão em que, numa discussão política, se decidiu ouvir uma troika de mulheres) quando, já no final do programa, decidiu interromper Ana Gomes, que explicava a sua posição quanto à importância da aprovação de uma lei de emergência sanitária como alternativa aos sucessivos Estados de Emergência, para fazer algo que, apesar de não surpreender, conseguiu roçar a surrealidade. 

“Eu estive a ler várias entrevistas que deram recentemente”, disse a jornalista, “e há um nome que está presente e omnipresente, certamente sabem qual é”. Talvez tenha sido só eu – admito que não vou de peito cheio de otimismo quando me sento à espera do início dos debates televisivos – mas, neste momento, o primeiro pensamento que me apareceu à frente foi o de que o debate tinha terminado (o debate de ideias, leia-se). Clara de Sousa avançou. Afirmou, como comentário prévio à pergunta que se seguiria, que Ana Gomes tinha eleito o candidato da extrema-direita (o tal “omnipresente”) “como inimigo e não como adversário”, e sugeriu ainda que Ana Gomes parecia revelar medo dele (mais tarde, perguntou mesmo às duas candidatas se o medo se confirmaria). 

Nos nove minutos e 58 segundos seguintes, a moderadora fez um total de 19 perguntas e uns tantos comentários sobre um candidato que não estava presente na sala e com o qual tanto Marisa Matias como Ana Gomes iriam debater dentro de dias. Foi isso que as candidatas tentaram explicar: que talvez não fizesse sentido perder uma dezena de minutos a discutir o projeto político de alguém que lá não estava quando se faria exatamente isso daí a menos de uma semana. “É importante [falar sobre este tema]”, respondeu Clara de Sousa, “porque tanto Marisa Matias como Ana Gomes colocaram este senhor no centro, também, do debate”. “Os média é que colocaram, desculpe”, disse Ana Gomes.

Ana Gomes tem razão. Não foram os restantes seis candidatos a colocar o líder da extrema-direita no pedestal mediático em que se encontra. Foram os jornalistas.

Desde o início da cobertura das eleições presidenciais, a maioria dos órgãos de comunicação social tradicionais deixaram que um candidato – não o mais destacado nas sondagens e longe de ser o mais poderoso politicamente – decidisse em que moldes se fazia o debate. Escolheu quando e sobre que temas se discutiria, quais as estratégias editoriais a seguir e em que formato se faria a discussão. Talvez isso mostre duas coisas.

Em primeiro lugar, a falta de preparação crónica das redação portuguesas na cobertura de eleições e, no geral, no escrutínio do poder e dos representantes. Durante um mês, as perguntas foram as mesmas, as respostas foram as mesmas. O último debate nas televisões, transmitido pela RTP, serviu de caricatura disso mesmo – talvez para deleite dos produtores de memes nas redes sociais: durante cerca de duas horas, candidatos e candidatas ofereceram as mesmas respostas às mesmas perguntas. E, ainda assim, as mesmas mentiras ficaram por desmentir, as mesmas afirmações por contextualizar. A escolha de temas a debate não pecou apenas pela falta de diversidade. Pecou também pela constante insistência em tópicos que nada têm que ver com os poderes da presidência mas, pelo contrário, com decisões legislativas ou executivas por natureza.

Em segundo lugar, mostra uma comunicação social subserviente. Não subserviente à extrema-direita – não tenho dúvidas de que uma maioria de jornalistas do país se sente horrorizada por ela –, mas subserviente à ditadura dos cliques. E, sim, os disparates da extrema-direita oferecem audiências. Quando o “candidato omnipresente” insulta representantes políticos, promove desinformação ou fabrica teorias de conspiração, a multiplicação da patetice ocorre como se de um fenómeno natural se tratasse – da televisão para as capas de jornais, para as redes sociais e para os grupos de WhatsApp. Não é fácil estar preparado para desmentir, ao vivo, cada uma das absurdidades que esta gente diz. Talvez, por isso, se deva acabar com a infeliz estratégia de transmitir debates em direto. Para que haja tempo para fazer aquilo a que o jornalismo se propõe: mediar.

Andamos há anos a perguntar-nos (jornalistas, cidadãos) como devem os média tratar forças antidemocráticas, fascistas. Ninguém saberá a resposta certa, mas há duas regras que parecem óbvias: não fazer de todas as entrevistas e debates algo sobre elas e falar de temas importantes para as pessoas e para o país, não dos temas que elas decidem abordar.

Hoje, dois dias antes das eleições presidenciais e depois de já milhares de pessoas terem votado, uma coisa é clara: a cobertura jornalística de um dos mais importantes momentos da nossa Democracia não está a cumprir o seu papel. Temas importantes ficaram de fora, como a garantia de necessidades básicas a cidadãos que se veem profundamente impactados pela pandemia e pela crise económica, como artistas, agentes culturais, trabalhadores e trabalhadoras precárias; a defesa de direitos de imigrantes; a capacidade de influência presidencial no combate ao racismo; a pobreza e a desigualdade. Todas elas exploradas na Constituição da República Portuguesa que, quem vencer no domingo, terá de jurar cumprir e fazer cumprir. Faltou escrutinar decisões políticas e contradições de quem se candidata, especialmente numas eleições em que o atual presidente tenta reeleger-se. Faltou tempo e profundidade para ouvir o que candidatos e candidatas acreditam.

Mas nem tudo foi mau. Se houve entrevistas que cumpriram tudo isso foram as publicadas pelo podcast Perguntar Não Ofende, que podem ouvir aqui. Está, entre elas, talvez a mais profunda e completa entrevista feita ao recandidato a Presidente da República. Quando os média tradicionais falham, talvez haja alternativas do outro lado da barricada. E se o jornalismo independente for feito com profundidade, investigação e sem fins-lucrativos, é ele quem revolucionará os média.

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