“A ginga do futebol de saia”, por Maria Almeida

“Um jornalista perguntou à teóloga alemã Dorothee Sölle:
— Como explicaria a uma criança o que é a felicidade?
— Não explicaria — respondeu. — Dar-lhe-ia uma bola para que jogasse.”
Futebol ao Sol e à Sombra, Eduardo Galeano

Jogo futebol desde miúda. Inicialmente por imposição do meu irmão, mais velho seis anos, que me obrigava a defender, numa baliza fictícia na parede, os “estouros” que lhe eram proibidos no recreio da escola. Em pouco tempo, deixei a baliza e aprendi a jogar melhor com os pés. As nódoas negras passaram a marcar-me a pele das canelas e as sapatilhas a desfazer-se ao fim de poucos meses.

Como estudava numa escola só de raparigas, aprendi a jogar com outras miúdas que, como eu, gostavam de futebol. Jogávamos nos intervalos, de saia axadrezada e meias pelo joelho, um incómodo imposto pelo uniforme escolar de um colégio católico e conservador. A Sara, que ganhou altura mais cedo do que todas as outras, ia à baliza, eu e a Francisca, rápidas e magrinhas, preferíamos as alas, e a Carlota, que tinha uma ginga inexplicável no corpo, fintava toda a gente até marcar. Éramos felizes naquele recreio, brincando entre nós, longe dos olhares dos outros. Mas, para lá dos muros da escola, a história era outra.

Habituei-me a ouvir de pessoas próximas que o futebol não era para meninas. Em casa, na escolha da indumentária, voltavam a dizer-me para vestir saia, um pedaço de roupa que cedo vi como opressor: “uma menina que se preze não deixa a saia levantar, movimenta-se com graciosidade e nunca abre as pernas”. Os meus pais sempre me deixaram jogar, embora a minha mãe se preocupasse com a minha saúde: eu era pequena, magrinha e, aos olhos dela, frágil. Um dia, depois de me ter magoado no joelho, levou-me a um ortopedista. O médico, ao ver-me no consultório, precipitou-se a indicar a cura: “Não pode jogar futebol. Não gosta de ballet? Um desporto mais feminino fazia-lhe bem.” Respondi-lhe que não e saí da sala determinada a fazer exatamente o contrário.

Fui jogando futebol, futsal, na escola, na praia, em casa. Mais tarde, já a viver em Lisboa, afastei-me das pessoas com quem jogava e foi ficando mais difícil continuar a dar uns toques na bola. Não gostava de ser a única mulher num jogo só de homens, que me achavam frágil e que hesitavam em passar-me a bola, e era raro conhecer outras mulheres que gostassem de jogar. Acabei por ganhar vergonha, alguns dos preconceitos que fui ouvindo em criança foram-se enraizando e deixei de fazer o que mais gostava. Pendurei as chuteiras, durante largos anos, para as calçar de novo agora.

Há uns meses, falaram-me de uma nova equipa amadora de futebol que se estava a formar: FOCA FC. Lembrava-me de ter jogado com algumas daquelas pessoas meses antes, mas como estava lesionada, não continuei. A 29 de junho, assisti a um torneio entre três equipas femininas: FOCA FC, CRP Campolide e Associação Desportiva Recreativa “O Relâmpago”. Assim que entrei, reparei que na janela, atrás da mesa de DJ, estava pendurada a bandeira da Palestina, mais à frente, na rede que protege o campo, a bandeira LGBTI+. Eram dezenas as pessoas a assistir, a puxar pelas equipas. No final, houve arraial, com música e vinho à mistura.

Em julho, comecei a ir aos treinos e fui-me apercebendo da comunidade que estavam a criar: uma equipa feminina, queer, e um espaço para pessoas que até ali não tinham encontrado o seu lugar no futebol e que o queriam construir. Uma vontade de uma, tornou-se na vontade de muitas. Há treinos todas as semanas, fazem-se jogos amigáveis, marcam-se jantares e sonha-se com o projeto de criar uma liga de futebol feminino, queer, amadora para trazermos outras equipas e pessoas para esta competição.

O que em tempos me pareceu utópico, tornou-se real. Voltaram as nódoas negras nas canelas, mas voltei a ser feliz com uma bola no pé.

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